sábado, 13 de agosto de 2011

O Ato Falho


José Roberto Tolentino - ecbahia.com

O Ato Falho
22/03/2005

Por instantes, breves instantes, cheguei a me confundir ao ver na grade de programação do pay-per-view da TV por assinatura o anúncio do jogo entre Bahia e Fluminense de Feira: pensei tratar-se do Fluminense do Rio, mas logo caí na real. Responsabilizei a similaridade dos escudos, para justificar esse meu lapso que foi corrigido logo que percebi efes demais no escudo do time homônimo do sertão.

Dizem que o desejo do inconsciente se realiza através do “ato falho” e que nenhuma palavra, gesto ou pensamento aparentemente equivocado ocorre por acaso - pelo menos é o que suponho de cá de baixo da minha leiga ignorância em Psicologia. Aliás, essa coisa de pecar por pensamentos, palavras e obras é a base da nossa formação (repressão) moral cristã (para os que a seguem) e sempre me atemorizou essa idéia de pecar por “pensamentos”, mas nem por isso me tornei um modelo de virtude interior e, recidivantemente, as coisas mais escabrosas continuam perpassando “minha pobre mente conturbada” - devo aqui creditar à minha mulher essa última expressão.

Pois não é que, com essa mania de ficar analisando esses atos falhos, eu cheguei a uma explicação razoavelmente plausível para o que eu referi acima? A resposta é uma só, meus amigos: nostalgia. Pura e doce nostalgia. Não foi por acaso que confundi um Flu com o outro. E a culpa é de Nestor. Não é aquele da letra de “Tu és o MDC da minha vida” , de Raul Seixas (...na Faculdade de Agronomia/ numa aula de energia, bem em frente ao professor/ eu tive um chilique desgraçado/ vi você surgindo ao meu lado/ no caderno do colega Nestor...); o Nestor em questão é o bravo e competente jornalista Nestor Mendes Jr., companheiro de coluna aqui no ecbahia e autor de Bahia Esporte Clube da Felicidade, livro que só não pode ser chamado de obra definitiva porque o Bahia não acabou (ainda).

Foi me deleitando e fazendo mais uma releitura do livro, essa semana, que me detive na narrativa do jogo entre Bahia e Flu do Rio, na semifinal do Campeonato Nacional de 1988 (já em 89). Aí, tudo o que aconteceu naquele histórico dia me reapareceu na memória, nos sentidos e nas secreções lacrimais.

Eu estava lá. Parece que todo o mundo estava lá. Cheguei bem cedo para evitar engarrafamentos e confusões, estacionei meu Passat 76 Missão Impossível (esse carro se autodestruirá em 5 segundos) na Rua da Independência, já pensando em ter, na volta, a minha saída facilitada pela Mouraria, Rua do Paraíso e alcançando a Avenida Sete. Deixei o carro com a certeza que a sua aparência era o melhor seguro contra roubos existente no mercado. A experiência de chegar até o estádio já foi comparável ao espreme-gato que se experimenta quando se tenta passar pela pipoca do Chiclete. Ao entrar na Fonte percebi um incrível número de pessoas tão precavidas quanto eu me supunha. A zorra já estava lotada - para os parâmetros dos clássicos regionais, por exemplo.

A duras penas consegui assento no meu sítio costumeiro de então – arquibancada superior, à direita da tribuna, num local que fizesse uma linha reta, uma diagonal perfeita, entre a bandeirinha de escanteio e o vértice da linha divisória com a lateral lá do lado das antigas gerais. Esse posicionamento era absolutamente essencial para que as coisas caminhassem bem dentro de campo. Com o passar do tempo, o aperto começou a se intensificar e meus dois irmãos Lu e Júnior, que estavam ao meu lado, já se encontravam quase sobre meu colo e as minhas pernas foram sendo obrigadas a se fechar, comprimindo as minhas partes baixas e colocando em risco a minha produção de espermatozóides confiáveis.

Como se fosse possível, no momento em que o Bahia entrou em campo e todo o mundo levantou para saudar o time (exceto eu, pra garantir meu lugar e para tentar me precaver dos fogos que a Torcida Povão soltava), apareceu mais uma enxurrada de gente querendo ocupar espaço ali e alhures. Fui então designado pelo destino para acolher dois bêbados à milanesa (cobertos de areia) no espaço da arquibancada destinado a colocarmos os pés. Um deles, o de maior massa adiposa, desabou literalmente sobre minhas Havaianas e sucumbiu ao sono ou ao coma. O outro, aparentemente menos embriagado ou mais resistente, ficou abaixado, mas dando cotovelada e apoiando-se nos meus joelhos, insistindo em levantar-se continuamente. – Peraí, meu irmão! Abaixa aê, caraio! Eu já não estava conseguindo ver porríssima nenhuma. Aí o Fluminense faz seu primeiro ataque e... gol de Washington! Foi o maior silêncio já havido até hoje na Fonte Nova. O bêbado que estava comatoso reagiu ao gol vomitando todas as batidas de Diolino e todos os pedaços de comeu-morreu que havia ingerido até então.

Retei-me! Qualquer cientista do Projeto Genoma e qualquer estafeta cartesiano sabe sobejamente que dá o maior azar assistir a um jogo ao lado de um torcedor adversário, ao lado de uma mulher que não entenda de futebol ou do lado de um bêbado. Eu estava do lado de dois! O Bahia estava perdendo e os meus pés estavam sendo digeridos pelo suco gástrico daquele peru de Natal escornado à minha frente. Avisei a meus irmãos: - Vou me picar daqui! Na saída a gente se encontra lá onde deixei o Missão Impossível.

Enquanto ia me deslocando, ouvi uns insultos previsíveis, esquivei-me de umas caras feias, mas depois de 10 minutos consegui alcançar a escada para sair dali. O peso no peito que eu estava sentindo e que reconhecia como prenúncio de tragédia foi aos poucos me abandonando. Mas o jogo já transcorria há uns 15 minutos e eu não estava conseguindo ver nada. Tentei encontrar um lugar em cima do placar: nem uma fresta do gramado era possível ser vista. Fui tentar acesso na arquibancada superior do outro lado: não passava nem um átomo de hidrogênio. Desci e fui em direção às antigas gerais e, talvez, por ainda estar batendo sol, achei uma gretinha suficiente pra ver Tarantini se preparando para cobrar um falta pela direita. A bola saiu teleguiada para a cabeça de Bobô e daí para o nosso gol de empate. Como eu estava bem atrás da aglomeração de torcedores que assistiam ao jogo naquele local, saí correndo mais para trás, gritando e pulando sozinho até que fui alcançado e abraçado efusivamente por outros torcedores com os quais dividia naquele momento muito mais que um recíproco desconhecimento – um simultâneo frenesi.

Findo o primeiro tempo, achei que finalmente sobraria um espaço deixado por aqueles que iriam para os bares e para os temíveis sanitários da Fonte. Fui tentar um lugar na arquibancada imediatamente inferior àquela em que me instalei inicialmente, no intuito de encontrar um posicionamento que fizesse a imprescindível diagonal com a bandeirinha de escanteio e o vértice da linha de meio de campo. Pouquíssima gente arredou pé de onde estava. Percebi que minha capacidade preditiva estava em seus piores dias e que a minha via crucis iria continuar. O único posicionamento que se mostrou possível e disponível foi o da parte posterior daqueles longos bancos de cimento que ficam na parte superior da arquibancada (se é que me faço entender). O jogo recomeça e o Bahia vai pra cima do Flu. A torcida sente o ânimo do time e vai se inflando ainda mais. Em pé na pontinha do banco de concreto, fila dupla na minha frente, segurando por vezes no ombro de alguém para não cair, meu equilíbrio era precário. E de repente uma jogada de Charles pela direita, um bate-rebate, um petardo para o gol. Valeu? Quem foi que fez? Foi Gil? Foi Bobô? Nada disso interessa: é gol! É gol do Bahia! É o gol da virada! Bora Baêa, minha porra! O grito de gol veio tão das entranhas que, se fosse mulher, eu diria que foi um grito uterino. Dessa vez a comemoração com os confrades circunstantes foi tão efusiva que, por pouco, eu teria sido vítima ali de uma precoce palpação da próstata.

Era a materialização da força desse time predestinado e dessa torcida tão compreensivelmente fiel e arrebatadora. Os nossos meninos continuavam dando sangue em campo e ataques se sucediam. Eu continuava praticando equilibrismo no banco de cimento e, num momento em que Gil quase marca o terceiro, o pessoal que estava na minha frente se agitou e eu me descuidei, pisando o espaço vazio como se fora uma extensão do banco e acabei caindo, não sem antes pisar em falso no chão e ouvir um estalo no tornozelo. A dor era insuportável e eu comecei a sentir tonturas e a suar frio, deitei-me no chão para oxigenar melhor o cérebro e não perder totalmente os sentidos. Enquanto me contorcia e suava profusamente, a baiana do acarajé que estava logo atrás, achando que aquilo era emoção por causa do jogo, procurava me consolar dizendo: - Fique assim não, meu filho! O Bahia vai ganhar! Se preocupe não! Santa baiana do acarajé: ela me trouxe de volta da dor para o júbilo. O Bahia estava ganhando. O Bahia ia para a final. Já estaria na Libertadores após aquele triunfo. Aos diabos com a dor. Aquele pé-de-pilão que eu exibia e que latejava não era nada. O que importava era o Bahia e o Bahia ainda precisava da minha ajuda: Bora Baêa, minha porra!

Não sei mais o que aconteceu no campo até o fim do jogo. Só lembro de ver o placar estampando 113 mil pagantes, número que tempos depois foi reduzido para 110 mil e poucos. Mas foi muito mais. Creio que todas as boas almas da Bahia estavam lá na Fonte nesse dia, de alguma forma. O jogo acabou e parecia que ninguém queira sair do estádio. Todos pretendiam eternizar aquele momento.

O meu pé continuava inchando e doendo. Comecei a chorar, mas não por causa dor, com a qual já estava de alguma forma me acostumando: é que lembrei do meu pai. Ele, que morrera havia alguns anos. Ele que me influenciou a torcer inicialmente para esse mesmo Fluminense do Rio que acabáramos de derrotar e que depois me ensinou a torcer ainda mais pelo Bahia, justo em 1966, quando o Leônico foi campeão. Ele, o Expedicionário Miguel Tolentino, ex-combatente da FEB no teatro de operações na Itália, durante a II Guerra, que participou de inúmeras batalhas e foi ferido por uma mina terrestre alemã na mesma parte do corpo que agora latejava em mim. Ele que, estando internado na Santa Casa em Nazaré das Farinhas, hemiplégico e convalescendo do terceiro derrame cerebral, pediu para ser levado de ambulância numa maca até a sua sessão eleitoral só para poder votar em Paulo Maracajá para deputado estadual e ajudar, segundo ele acreditava, o nosso Bahia. Ele não viveu para ver o que eu via. Eu não podia abraçá-lo apertada e demoradamente naquela hora e permanecer esses longos segundos sem dizer uma palavra sequer um para o outro, mas falando tudo o que palavras falham em expressar. Ele não estava ali. Ou será que aquela pontada no meu pé era mais do que um simples sintoma da lesão que eu sofrera? Coincidências, amigos... apenas coincidências.

Não me perguntem como foi que eu cheguei sem ajuda de volta ao meu carro. Não lembro. Só não pensem que saí dali para uma clínica traumatológica. Eu e meus irmãos fomos foi pra Barra. E parece que, novamente, toda a nossa Soterópolis teve a mesma idéia. Sem acerto prévio, armou-se o maior carnaval nos bares da proximidade do Farol. A trilha sonora consistia basicamente do Hino do Bahia e da música Campeão dos Campeões. E a cada repetição dessas músicas, os primeiros acordes pareciam algo totalmente inédito e a euforia tomava conta de todo o mundo. Eu estava feliz. Todos estavam. É fato conhecido que Salvador fica mais luminosa quando o Bahia ganha, ainda mais naquelas circunstâncias. No dia seguinte eu já tinha um álibi para faltar ao trabalho: meu pé, imensamente edemaciado, que num ato falho saltou no vazio para me trazer a dor e a alegria de novamente juntar meu pai e o Bahia.