sábado, 21 de abril de 2012

Miguel Tolentino - uma biografia em minha memória


Miguel Tolentino de Souza nasceu no dia 08 de maio de 1921. Terceiro filho de Públio Tolentino de Souza e de Durvalina Meirelles de Souza (Durvalina Leite Meirelles quando solteira), conhecida como Dona Dudu, veio se juntar aos irmãos Helenita e Renato. A família residia em sua chácara de 5000 m2 em Nazaré, localizada ao sopé do morro na antiga Rua dos Artistas, no bairro da Conceição, cujo terreno houvera sido desmembrado da fazenda de Leôncio Tolentino de Souza, avô de Miguel e pai de Públio, e as terras dessa propriedade, com sede e engenho na Jacatiba, se estendiam do Alto do Barão até o Quiçaçá, nos limites de Nazaré com Aratuípe.
A infância de Miguel Tolentino foi inicialmente marcada pelo falecimento precoce de seu pai Públio Tolentino, conceituado mestre da oficina de Estrada de Ferro. O sustentáculo da casa ficou por conta da forte presença de Dona Dudu e do auxílio do sogro Leôncio Tolentino. Conta-se que, até mesmo, o famigerado e temido Barão Açu da Torre, que tinha sua propriedade na vizinhança, dedicava especial respeito e consideração à viúva e sua família, destinando-lhes relativa proteção.
Criado nesse ambiente meio urbano, meio rural, e com as inegociáveis restrições maternas para se aventurar pela cidade que se estendia abaixo da elevação em que a chácara se situava, Miguel se mostrou desde cedo muito inclinado às incursões pelo mato nos arredores da chácara, tornando-se um explorador, caçador e coletor muito hábil. Além das pacas, tatus e preás que caçava, também consumia avidamente as frutas de ocasião que encontrava em suas andanças pelos quintais alheios – cajus, jacas, cajás, ingás, etc.
Para ilustrar a rigidez com que a sua mãe o educava, contava ele que, certa feita, realizando uma de suas expedições pelas terras do Barão com mais alguns amigos à procura de cajus, deparou-se com um boi, digamos, não muito amistoso, que avançou em sua direção; na desesperada e urgente tentativa de fuga, Miguel embrenhou-se por entre uma touceira de cansanção. Após transpor esses arbustos altamente urticantes, já saiu do outro lado com os olhos totalmente edemaciados, quase fechados, sem contar as bolhas no resto do corpo. Foi conduzido pelos relutantes e temerosos amigos até a cerca que delimitava a sua chácara e, com dificuldade, caminhou até chegar em casa. Lá, a sua mãe, a temível Dona Dudu, o aguardava e, sem delongas ou questionamentos, aplicou-lhe uma impiedosa surra de cipó! Enquanto apanhava, naquele estado já deplorável, ouvia sua mãe dizer: “Boa coisa você não estava fazendo, seu moleque!”. Só depois de findo esse castigo físico adicional é que foi questionado sobre o que tinha acontecido e aí, finalmente, recebeu o tratamento possível para o contato com cansanção, que era colocar urina da própria vítima sobre os locais afetados. Sobreviveu.
Miguel fez o curso primário na escola José Marcelino e no Aprendizado Clemente Caldas. Ainda pré-adolescente começou a trabalhar no estabelecimento comercial do Sr. Octacílio Brito.
Quando eclodiu a II Guerra Mundial e começaram a ocorrer os torpedeamentos de navios no litoral brasileiros, levando à declaração de guerra do Brasil às forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), em 22 de agosto de 1942 e posterior criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), Miguel se alistou como voluntário para participar das forças do exército brasileiro que estavam destinadas a combater naquela guerra. Há quem diga que ele preferiu a guerra ao enfrentamento cotidiano com Dona Dudu!
Após passar pelos exames seletivos, recebeu as primeiras instruções militares ainda na Bahia, e diante da necessidade de o Exército atuar no fortalecimento do Teatro de Operações do Nordeste, que passou a ser prioritário, foi destacado para o serviço de patrulhamento da costa em Sergipe e Alagoas, incumbido, entre outras coisas, da penosa tarefa de recolher nas praias os inúmeros corpos dos tripulantes e passageiros mortos nos navios brasileiros torpedeados por submarinos alemães, naquele momento em que os alemães decidiram mudar o esforço de sua campanha submarina, das Ilhas Britânicas para o litoral do continente americano, a fim de bloquear o apoio dos Estados Unidos a seus aliados.
No início de 1944, Miguel foi incorporado à 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE), com sede no Rio de Janeiro. Constatada a inexistência de especialistas para um gama enorme de funções militares previstas na organização americana para o exército, faziam-se convocações especiais e cursos de emergência no Centro de Instrução Especializada, então criado para atender as necessidades da FEB. Miguel realizou o curso para tornar-se especialista em localizar e desarmar minas terrestres, no 6o Regimento de Infantaria (6o RI), sediado Caçapava-SP. De abril a julho, intensificou-se a preparação militar, realizada com uma série de restrições materiais, inclusive por carência do material bélico com que se iria combater. Miguel costumava evocar a memória do realismo desses treinamentos, relatando um episódio em que um companheiro teve sua vida tragicamente ceifada, ao falhar na técnica correta de manter-se próximo ao solo, durante treinamento de rastejamento sob uma rede acima da qual uma metralhadora despejava balas de verdade. Era uma preparação bem realista para o que estava por vir.
Miguel Tolentino embarcou com destino à Itália, juntamente com o seu Regimento, no dia 02 de julho de 1944. Após zarpar do Rio de Janeiro, em tensa viagem marítima a bordo do navio “General Mann”, escoltado, até Gibraltar, por navios de guerra nacionais e norte-americanos, Miguel e seus companheiros integrantes do 1o Escalão da FEB chegaram ao porto de Nápoles em 16/07/1944. Contava ele que tal era a quantidade de destroços de navios na águas da baía de Nápoles, que o desembarque teve que se dar distante do cais, usando os cascos de navios afundados como plataforma. Depois de uma estadia de 10 dias em Bagnoli, perto de Nápoles, o 1º Escalão de Embarque da FEB seguiu para a região de Tarquinia para receber material e submeter-se a intenso treinamento final. Somente na Itália é que os grupamentos táticos da 1ª DIE puderam receber o equipamento bélico com que iriam lutar e realizar seu adestramento final, sendo incorporados ao V Exército norte-americano, que se encontrava com extrema escassez de efetivos, haja vista que perdera o VI Corpo Americano e o Corpo Expedicionário Francês, levados para a invasão do sul da França. Entre 18 e 20 de agosto, o 1º Escalão de Embarque da FEB seguiu para Vada, que ficava então a 25 km da frente de combate do Arno, terminando ali as manobras de treinamento e começando o deslocamento para a zona de combate. A missão da FEB era a de auxiliar o V Exército a manter as forças ofensivas para fixar as forças alemãs que ainda combatiam na Itália e impedi-las de reforçar as frentes principais no restante da Europa.
Miguel, dado ao seu porte físico, era chamado de “Baiano Grande” pelos companheiros. O 6 º RI foi a primeira unidade brasileira a entrar em posição e cumprir missão de combate, em 15 de setembro de 1944, na região de Vicchiano. Participou das operações da jornada de 16 de setembro de 1944 na linha Monte Comunale - Il Monte, em que a FEB se apossou das localidades de Massarosa, Bozzano e Chiesa. A tropa brasileira foi avançando para o norte, obtendo seu primeiro êxito expressivo ao conquistar, a 18 de setembro, da cidadezinha de Camaiore, sob forte oposição de fogos de artilharia e morteiros, mas suplantando as pequenas resistências. Na jornada do dia 20, nas ações de estreitamento do contato, foram feitos os primeiros prisioneiros e presenciadas as baixas iniciais de companheiros pracinhas. Miguel participava nas patrulhas de reconhecimento, detecção e desarmamento de minas. Costumava relatar o pavor dos soldados alemães capturados, mormente frente aos soldados brasileiros negros - que eles supunham ser antropófagos, por conta de uma cartilha nazista que houvera sido distribuída previamente à chegada dos brasileiros à Itália. A intenção da tal cartilha era a de evitar que a população italiana viesse a simpatizar com os brasileiros, mas acabou resultando mesmo foi num temor da própria tropa alemã aos “selvagens”.  
Vieram depois a tomada da elevação de Monte Prano e da captura das localidades de Fornachi, Barga e Gallicano. Em 30 de outubro foi feito o ataque a San Quirico e Lama di Sotto, cuja posse por nossas forças constituía uma ameaça a Castelnuovo di Garfagnana, por onde passava uma transversal rodoviária de importância vital para a movimentação das reservas do inimigo.
Até esse momento a FEB havia sofrido 290 baixas, capturado 208 prisioneiros e conseguido o saldo positivo de 40 km de vitoriosos avanços.

Por decisão do General Mark Clark, comandante do V Exército, a divisão brasileira foi retirada da frente de combate de Castelnuovo di Garfagnana e deslocada para o setor situado entre os pequenos rios Reno e Panaro, na rota 64, posição que era vital para conquistar Bolonha, importante junção rodoferroviária em três direções, que vinha sendo atacada inutilmente nos últimos três meses pelos americanos e ingleses, os quais sofreram pesadas perdas. A tomada de Bolonha significaria vencer a batalha da Itália.
Esse era o quadro da frente italiana quando a FEB começou a atuar totalmente reunida: ataques dizimados, divisões inteiras necessitando de descanso; frio, lama e sangue, desalento e dor.
As posições brasileiras no rio Reno, por onde corria a rota 64, ficavam nas encostas de um arco de elevações, em cujas partes dominantes os alemães possuíam posições fortificadas: Belvedere, Gorgolesco, Monte Castelo, Della Torracia, Torre di Nerone, Soprassasso. Oblíquas em relação à estrada, as elevações descortinavam e dominavam todos os movimentos das tropas aliadas, sendo necessário manter geradoras de fumaça em permanente funcionamento para dificultar a visão do adversário. Nessa privilegiada situação topográfica e tática, em que o Monte Castelo era a parte mais sensível, combatia a aguerrida 232ª Divisão de Infantaria Alemã.
Impunha-se, pois, atacar as posições fortificadas do inimigo naquele setor. Atacar do sopé para o cume fortificado, ainda sem a necessária experiência de combate; realizar ações frontais, sem meios suficientes; sem o apoio de blindados, pouco próprios para o combate na montanha e que se atolariam no lodo daqueles dias; arrastar-se na lama e no frio sob o castigo de pesados capotões e enormes galochas; combater sem a ajuda e o conforto da aviação, ausente daqueles terríveis céus de novembro e dezembro de 1944.




Nesse quadro, Miguel, como integrante do batalhão mais experimentado no combate até então, participou das ofensivas contra Monte Castelo que se deram por 03 vezes no final de novembro de 1944 e no dia 12 de dezembro. Tendo em vista as peculiaridades da situação, a Divisão, ao invés de empregar centralizadamente os seus regimentos, acionava diretamente os seus batalhões.  Mesmo atacando juntamente com a Task Force 45 norte-americana, não se obteve sucesso por conta de insuficiência de meios e por terem sido ataques frontais a posições fortificadas.
Durante o ataque a Monte Castelo na noite de 12 de dezembro, em meio ao frio e neve, avançando em meio a uma chuva de projéteis e granadas, Miguel, ironicamente, pisou numa mina alemã e a explosão o arremessou para longe. Permaneceu estendido e atordoado no meio da neve e lá ficou com o pé direito aos pedaços, sem saber ao certo se estava vivo ou morto. Sobreviveu por toda a noite praticamente congelado. Quando chegou a luz do dia, os companheiros que estavam recolhendo os mortos já o estavam dando como uma das baixas, mas logo perceberam que ele ainda estava com vida. Foi então removido para um hospital de campanha do Serviço de Saúde e daí para hospitais militares em Pistoia, Pisa e Livorno, sendo submetido a cirurgia de síntese, enxerto e reconstituição das partes ósseas atingidas. A sua permanência nos hospitais foi prolongada e a recuperação lenta e dolorida, tendo que permanecer com aparelho de tração e perna direita elevada por um bom período. No hospital conviveu com os mais variados dramas dos soldados aliados que lá se encontravam com os mais variados ferimentos, mutilações e traumas psíquicos. Quando começou a andar novamente foi enviado para reabilitação num hospital em New Orleans, nos Estados Unidos, pois a guerra na Europa já estava perto do fim e os americanos queriam dispor de mais efetivos para enviar à guerra do Pacífico.

Foi ainda nos Estados Unidos, no dia de seu aniversário de 24 anos, 08 de maio de 1945, que Miguel presenciou e participou da festa do fim da guerra na Europa. A Alemanha finalmente se rendera e o nazi-fascismo foi derrotado. Miguel relatava que a imagem que mais o marcou nesse dia foi ver, pela primeira vez, brancos e negros juntos, naquela região dos Estados Unidos marcada pela segregação racial, compartilhando os mesmos abraços e beijos, bebendo e comendo juntos. A festa se repetiria em agosto, quando o Japão, após sofrer os ataques das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, também se rendeu e a II Guerra teve fim.

Ainda sem estar completamente recuperado, Miguel retornou ao Brasil, ficando inicialmente num hospital do Exército em Recife e depois seguiu para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até a dissolução da FEB no final de 1945. Foi condecorado com a Medalha de Campanha e a Medalha Sangue do Brasil. Não conservou muita coisa que o lembrasse da guerra. Possuía uma razoável coleção de armas alemãs que recolheu dos inimigos abatidos, mas no seu retorno ao Brasil as distribuiu com os colegas pracinhas que queriam levar algum souvenir consigo.
O seu retorno a Nazaré só se deu no ano seguinte. Viajou do Rio de Janeiro até Jequié. De lá passou um telegrama avisando que estava chegando e pegou o trem para Nazaré. A comunidade nazarena rapidamente se mobilizou e preparou uma calorosa recepção para o seu filho que lutara em defesa da pátria no Teatro de Operações da Itália. Foi recebido com foguetes, banda de música e solenidade no salão nobre da Prefeitura. Consta que sua mãe não foi até a Estação Ferroviária recepcioná-lo, mantendo-se na execução da rotina doméstica, e que quando ele entrou em casa foi recebido apenas com a exclamação: "Ô, já chegou?" 
A Câmara Municipal de Nazaré o homenageou conferindo o nome de Rua Expedicionário Miguel Tolentino de Souza à rua onde morava na Conceição. Findas as homenagens, voltou à vida civil.
Em 1956, casou-se com Dona Iraildes de Almeida Souza, com quem teve 05 filhos, além de ter completado a criação de 3 sobrinhos, órfãos de seu irmão Renato, que faleceu em 1967. Foi comerciante a maior parte de sua vida, tendo inicialmente um armazém de secos e molhados chamado "O Continental", o qual foi completamente arrasado durante a enchente de 1960. Após esse incidente, foi administrador de fazenda, fiscal de rendas e secretário de obras do município entre 1962 e 1966. Eleito vereador em 1966, pela ARENA, foi Presidente da Câmara e exerceu seu mandato até 1970. Em seguida assumiu o cargo de Avaliador Judicial ao tempo em que mantinha a sua atividade de comerciante num pequeno mercado, onde houvera sido o armazém de seu falecido irmão Renato. Foi também Venerável da Loja Maçônica HIRAM.

Em 23 de janeiro de 1983, no Hospital Geral do Exército, em Salvador, veio a falecer, sucumbindo ao insidioso diabetes e suas complicações que já vinham deteriorando sua saúde há 08 anos. A sua trajetória está resumida na lápide do seu jazigo perpétuo no Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Nazaré: “Dos embates que a vida oferece/ conservá-la é sempre o mais duro/ o teu sopro de herói permanece/ insuflando-nos para o futuro”.


NOTA: no último dia do seu internamento no Hospital do Exército, às 8:00h da manhã, meu pai foi informado que teria que amputar a perna por conta de uma úlcera diabética. Horas depois seu quadro se agravou, entrou em coma leve e foi levado para a UTI. Eu estava de plantão em outro hospital e só pude chegar lá no final da tarde. Entrei na UTI para vê-lo às 18:00h; quando segurei sua mão, ele abriu levemente os olhos e eu lhe disse que iríamos lutar para fazê-lo recuperar-se. Ele, num aparente grande esforço, acenou um não com a cabeça e os olhos se encheram de lágrimas. Entendi que ele tinha desistido, que não queria mais viver com aquelas limitações que já vinham se arrastando há anos. Fiquei segurando sua mão e ele voltou a fechar os olhos. Vi que o monitor começou a registrar extrassístoles. Falei para o pessoal de plantão que caso ocorresse algum evento de parada cardiorrespiratória deveria ser encarado como óbito e não deveriam ser tentadas manobras de ressuscitação. Saí da UTI e voltei para o quarto onde minha família aguardava notícias. Falei da impressão pessimista que tive. Enquanto eu falava o colega plantonista da UTI chegou e relatou que meu pai tinha ido a óbito logo que eu saí. Um misto de tristeza e alívio se instalou em minha mente. Fui até o necrotério e fiz a barba do agora cadáver de meu pai, enquanto lhe acariciava o rosto e lembrava da sua trajetória de lutas desde a II Guerra.