sexta-feira, 9 de maio de 2014

Brecha para o passado


Brecha para o passado

Brecha impressionava pelo físico. Alto e vigoroso, parrudo mesmo, dava a impressão de que todos os músculos de seu corpo eram hipertrofiados. Tudo bem que ele impressionava, mas não atemorizava. Era só chegar perto e trocar umas duas palavrinhas com o negão que se via logo estar-se diante de um gentleman, afável e amistoso, um cara “super-gente-boa”, como costumamos dizer por aqui.

 Início dos anos 1970 em Nazaré (das farinhas) e Brecha era o censor do nosso colégio. Cumpria à risca sua tarefa de não nos deixar pelos corredores depois que tocava a sirene e as aulas recomeçavam. Também ficava na porta principal do colégio, na volta do intervalo mais longo, para cobrar que nos apresentássemos com o uniforme completo, principalmente com o escudo da instituição (peça que costumávamos furtar dos colegas para depois vender, pela metade do preço cobrado pela secretaria, a eles mesmos quando eram barrados sorridentemente por Brecha).

Numa das festividades cívicas do calendário oficial da cidade estava programada uma corrida rústica. Não houve a menor dúvida na hora de escolher quem seria o representante do nosso colégio: ele, claro, Brecha. Era barbada. Até uma covardia com os outros competidores.

Quando Brecha se alinhou para a largada em frente da Escola Profissional na Rua dos Coqueiros, deu pra ver aquela massa de muques nos braços e pernas recobertos de linimento, brilhando à luz do sol de três da tarde, enquanto ele se aquecia ainda mais com umas flexões, uns cangurus e uns polichinelos.

O percurso compreendia 10 voltas em torno daquele trecho da cidade, atravessando a Ponte da Conceição, seguindo pela Avenida D. Pedro II até a Praça da Prefeitura, descendo a ladeira dos Arcos, passando pela Ponte do Jacaré e voltando pela rua da feira até os Coqueiros novamente, defronte do beco da Escola Profissional. Não estou muito certo quanto à distância percorrida nesse trajeto (na infância tudo nos parece maior, mais longo e duradouro), mas creio que a extensão devesse ser pouco mais de 1 km.

A galera do colégio estava toda lá, com o uniforme de educação física contendo o emblema da escola, na maior torcida e incentivo: Bre-cha! Bre-cha! Bre-cha!

Quando foi dado o sinal de largada (que era na base do “um, dois, três e já”), faltam-me palavras para descrever suficientemente a velocidade alucinante, desabalada, desembestada, quase WARP, desenvolvida pelo nosso herói do Olimpo. Que Usain Bolt, que nada! O cara foi sumindo em direção à ponte da Conceição e tudo que eu conseguia ver eram as solas da chuteira preta, que ele estava usando com meião de futebol e tudo, sendo projetadas seguidamente para trás e para a frente. Os outros competidores usavam um conga ou um galupim ou um bamba e ele não: botou logo a chuteira de birro que usava no campeonato de futebol amador da cidade. Não sei o que passou em sua cabeça quando fez essa escolha.

Poucos segundos após a largada, enquanto os outros competidores ainda estavam na altura da casa de Dr. Raymundo Crusoé (uns 50 metros ou pouco mais), Brecha já se encontrava na subida da cabeceira da Ponte da Conceição e acelerando. O que víamos era apenas o ponto preto da cabeça dele se deslocando feito uma bala ponte afora.

Nós, na torcida, eufóricos: “Vai, Brecha! Vai, Brecha!”
Os outros 10 ou 15 competidores cá atrás, bem devagar (se tomarmos como padrão a velocidade de Brecha, the Flash), e tome-lhe vaia e depreciações nos caras molóides retardatários: “Vai, Bunda de Ameixa!” “Corre, Paralisia Infantil!” (lembrem-se de que não tinha esse negócio de politicamente correto naqueles tempos. Bullying era a regra).

Quando Brecha passou pelos trilhos da Estrada de Ferro já devia ter vantagem de uns 200 metros. Naquele ritmo, a questão era saber quantas voltas de vantagem ele ia colocar sobre os demais até ganhar a corrida.

Do nosso ponto de observação ficamos esperando Brecha aparecer na outra ponte. Olhos fixos na cabeceira da ponte, no Náutico Bar, esperando, esperando, esperando mais do que Pedro Pedreiro e nada. Cadê Brecha? Cadê Brecha? Nadica de nada nem de ninguém. Até que depois de um bom tempo começaram a surgir os corredores, uns meninos mirrados, um após outro correndo no estilo “piano, piano si va lontano” e Brecha, que é bom, necas de pitibiriba!

Mas que desgrama terá acontecido? Será que ele errou o caminho e foi em direção ao Camamu e ao Apaga-Fogo em vez de fazer a volta pela ponte? Não era possível que o negão não completasse nem uma voltinha sequer da corrida que até eu completava fácil, fácil. Alguns de nós saímos em missão de busca e resgate de Brecha. Pergunta daqui, olha dali, até que alguém disse que ele estava estirado lá na estátua de Dr. Alexandre Bittencourt, em frente da Prefeitura, passando mal, talvez vomitando, babando e espumando – estaria praticamente morto, pelo menos de cansaço. Quando chegamos ao local indicado não mais o encontramos. Demos uma passada pela Funtinha (o brega local) para ver se alguma alma caridosa o tinha levado para se esconder e se recuperar por lá. Nada. Nós também estávamos quase mortos, mas era de vergonha. A gente ali envergando o uniforme do colégio e o nosso representante nos proporcionando essa vergonheira no caminho da feira.

Depois desse fracasso, que no linguajar local é traduzido com a expressão “a participação de Brecha na corrida foi uma negação”, chegou a segunda-feira e ele apareceu no colégio com aquele jeito bem-humorado e disse que teve só uma dorzinha de facão e uma fisgada na perna e que se não fosse isso ia ganhar com 5 voltas de diferença. E ainda rindo disse: “paroano vou correr de novo; e vou evitar comida pesada no dia”.