Brecha para o passado
Brecha impressionava pelo
físico. Alto e vigoroso, parrudo mesmo, dava a impressão de que todos os
músculos de seu corpo eram hipertrofiados. Tudo bem que ele impressionava, mas
não atemorizava. Era só chegar perto e trocar umas duas palavrinhas com o negão
que se via logo estar-se diante de um gentleman, afável e amistoso, um cara “super-gente-boa”,
como costumamos dizer por aqui.
Numa das festividades
cívicas do calendário oficial da cidade estava programada uma corrida rústica.
Não houve a menor dúvida na hora de escolher quem seria o representante do
nosso colégio: ele, claro, Brecha. Era barbada. Até uma covardia com os outros
competidores.
Quando Brecha se alinhou
para a largada em frente da Escola Profissional na Rua dos Coqueiros, deu pra
ver aquela massa de muques nos braços e pernas recobertos de linimento,
brilhando à luz do sol de três da tarde, enquanto ele se aquecia ainda mais com
umas flexões, uns cangurus e uns polichinelos.
O percurso compreendia 10
voltas em torno daquele trecho da cidade, atravessando a Ponte da Conceição, seguindo
pela Avenida D. Pedro II até a Praça da Prefeitura, descendo a ladeira dos
Arcos, passando pela Ponte do Jacaré e voltando pela rua da feira até os
Coqueiros novamente, defronte do beco da Escola Profissional. Não estou muito
certo quanto à distância percorrida nesse trajeto (na infância tudo nos parece maior,
mais longo e duradouro), mas creio que a extensão devesse ser pouco mais de 1
km.
A galera do colégio estava
toda lá, com o uniforme de educação física contendo o emblema da escola, na
maior torcida e incentivo: Bre-cha! Bre-cha! Bre-cha!
Quando foi dado o sinal de
largada (que era na base do “um, dois, três e já”), faltam-me palavras para
descrever suficientemente a velocidade alucinante, desabalada, desembestada, quase
WARP, desenvolvida pelo nosso herói do Olimpo. Que Usain Bolt, que nada! O cara
foi sumindo em direção à ponte da Conceição e tudo que eu conseguia ver eram as
solas da chuteira preta, que ele estava usando com meião de futebol e tudo,
sendo projetadas seguidamente para trás e para a frente. Os outros competidores
usavam um conga ou um galupim ou um bamba e ele não: botou logo a chuteira de
birro que usava no campeonato de futebol amador da cidade. Não sei o que
passou em sua cabeça quando fez essa escolha.
Poucos segundos após a largada,
enquanto os outros competidores ainda estavam na altura da casa de Dr. Raymundo
Crusoé (uns 50 metros ou pouco mais), Brecha já se encontrava na subida da
cabeceira da Ponte da Conceição e acelerando. O que víamos era apenas o ponto
preto da cabeça dele se deslocando feito uma bala ponte afora.
Nós, na torcida, eufóricos: “Vai,
Brecha! Vai, Brecha!”
Os outros 10 ou 15
competidores cá atrás, bem devagar (se tomarmos como padrão a velocidade de Brecha,
the Flash), e tome-lhe vaia e depreciações nos caras molóides retardatários: “Vai,
Bunda de Ameixa!” “Corre, Paralisia Infantil!” (lembrem-se de que não tinha
esse negócio de politicamente correto naqueles tempos. Bullying era a regra).
Quando Brecha passou pelos
trilhos da Estrada de Ferro já devia ter vantagem de uns 200 metros. Naquele
ritmo, a questão era saber quantas voltas de vantagem ele ia colocar sobre os
demais até ganhar a corrida.
Do nosso ponto de
observação ficamos esperando Brecha aparecer na outra ponte. Olhos fixos na
cabeceira da ponte, no Náutico Bar, esperando, esperando, esperando mais do que
Pedro Pedreiro e nada. Cadê Brecha? Cadê Brecha? Nadica de nada nem de ninguém.
Até que depois de um bom tempo começaram a surgir os corredores, uns meninos
mirrados, um após outro correndo no estilo “piano,
piano si va lontano” e Brecha, que é bom, necas de pitibiriba!
Mas que desgrama terá
acontecido? Será que ele errou o caminho e foi em direção ao Camamu e ao Apaga-Fogo
em vez de fazer a volta pela ponte? Não era possível que o negão não
completasse nem uma voltinha sequer da corrida que até eu completava fácil,
fácil. Alguns de nós saímos em missão de busca e resgate de Brecha. Pergunta daqui,
olha dali, até que alguém disse que ele estava estirado lá na estátua de Dr.
Alexandre Bittencourt, em frente da Prefeitura, passando mal, talvez vomitando,
babando e espumando – estaria praticamente morto, pelo menos de cansaço. Quando
chegamos ao local indicado não mais o encontramos. Demos uma passada pela
Funtinha (o brega local) para ver se alguma alma caridosa o tinha levado para
se esconder e se recuperar por lá. Nada. Nós também estávamos quase mortos, mas
era de vergonha. A gente ali envergando o uniforme do colégio e o nosso
representante nos proporcionando essa vergonheira no caminho da feira.
Depois desse fracasso, que
no linguajar local é traduzido com a expressão “a participação de Brecha na
corrida foi uma negação”, chegou a segunda-feira e ele apareceu no colégio com
aquele jeito bem-humorado e disse que teve só uma dorzinha de facão e uma fisgada na perna e que se não
fosse isso ia ganhar com 5 voltas de diferença. E ainda rindo disse: “paroano
vou correr de novo; e vou evitar comida pesada no dia”.