segunda-feira, 17 de maio de 2021

Esportes radicais da minha juventude

Sair correndo do Ferry Boat, em Bom Despacho, para chegar no guichê da Viazul a tempo de conseguir comprar uma passagem de poltrona, para não ter que viajar em pé até Nazaré; 

- andar de "morcego" nos ônibus da Vibemsa  que subiam a Ladeira da Barra ou a Barra Avenida, para não ter que voltar da praia do Porto e subir a pé até a Vitória (a essa altura do dia não havia mais dinheiro disponível pra pagar a passagem do ônibus); 

- comer pastel do chinês da Carlos Gomes, merenda escolar do Colégio Luiz Viana, picolé com água do Dique e sanduíche "comeu-morreu" na geral da Fonte Nova... e sobreviver para repetir a dose;

- dar espeto no Tatu-Paka, Jereré, Braseiro, e sair picado sendo perseguido aos gritos de "Pega! Espeto!"; 

- frequentar xinxim de bofe dançante no Bairro Macaúbas (como penetra); 

- assistir ao filme "Operação Dragão" no Cine Jandaia e me tornar sparring dos espectadores da fila de trás que reproduziam os chutes e voadoras de Bruce Lee no recosto da minha poltrona; 

- tomar banho na fonte da Ladeira da Preguiça (quando faltava água no pensionato) junto às moças da difícil vida fácil;

- pular na pipoca do trio de Dodô e Osmar em frente ao Cine Guarani, receber no olho uma lata de Skol metade cheia (quando a lata era feita de lata) e tentar sair da muvuca para ir em busca de atendimento médico sem estar enxergando nada... 

- e tantas outras modalidades olímpicas que o meu atual corpo, em perfeito estado de degeneração, nem ousa supor.


segunda-feira, 12 de abril de 2021

Curta do que curti

 

Há um mito de que no momento da morte a sua vida passa diante dos seus olhos. Imagino que deva ser um curta-metragem em velocidade aumentada. Pensando nisso, e também na possibilidade de que esse momento me chegue sem um nítido aviso ou que nessa hora eu me encontre num estado de confusão mental mais acentuado que o habitual, decidi preparar logo o roteiro para esse filmezinho, com a peculiaridade de que esse curta deverá incluir apenas coisas de comer, com suas consistências, gostos e cheiros, além das imagens. Manda a prudência que os registros das minhas experiências e atos outros sejam deixados de fora.

Então, vamos lá: luz, câmeras, texturas, sabores, aromas, ação!

Melaço de cana com farinha; banana da terra cozida amassada e misturada com tapioca torrada com coco e açúcar; café com tapioca torrada com coco e açúcar; banana da terra cozida, amassada e misturada com coco ralado; banana da terra frita coberta com açúcar misturado com canela em pó; aipim cozido amassado ainda quente e misturado com manteiga; mingau de aveia misturado com pedacinhos de pão; doce de tamarindo; picolé de tamarindo; abafabanca de tamarindo; jambo bem maduro; sapoti maduro; seriguela de vez; cajá; mané véi; ingá; bacupari;  manga carlota; carne de sertão assada na brasa com farofa molhada de café com folhas de hortelã; salada de massambê assado com farofa de azeite de dendê, água e sal; salada de bacalhau também com com farofa de azeite de dendê, água e sal;  pão cacetinho sem o miolo, recheado de choriça assada na brasa enquanto envolta em papel de embrulho; pão fatia da Padaria de Passarinho; bolacha americana da Padaria Vitória, com manteiga; rolete de cana; caldo de cana; cana assada; chorete; acaçá de leite; caroço de jaca cozido; amendoim cozido; fufuca (castanha de caju assada, triturada bem fina e misturada com açúcar); quebra-queixo; pirulito de mel; bolinho de goma; doce de Leite Moça; caramujo; cajuzinho; coco mole comido com colher; doce de araçá em compotas; calda do doce de araçá em compotas com farinha; doce de groselha; calda do doce de groselha com farinha; doce em calda de leite cortado; doce em calda de banana prata em rodinhas; pão com manteiga, torrado e embebido no café com leite; bolo de ovo molhado no café; manauê, manauê, manauê...


quarta-feira, 31 de março de 2021

Golpe de 1º de abril



Era 1° de abril de 1964 (verdadeiro dia do golpe) ou pode ter sido no dia seguinte ou dias depois. Eu ainda ia completar 7 anos dali a um mês. Cursava o 2° ano primário, na cidade de Nazaré-Ba.

Por conta de problemas estruturais no prédio histórico da minha escola, que ameaçava ruir (e que acabou sendo demolido por ignorância), a minha sala fora transferida para as dependências do Tiro de Guerra, que ficava no térreo da Prefeitura Municipal.

Por volta das 13:00h eu me dirigia normalmente para a aula, subi a escadaria da Prefeitura e vi uma movimentação estranha, alguns soldados de uniforme verde postados nas entradas. Ainda assim segui meu rumo para ter acesso à minha sala de aula, quando um desses soldados portando uma metralhadora sustentada por uma alça sobre o ombro se interpôs no meu caminho e colocou o cano da arma bem no meu nariz.

A surpresa e o pavor que se apossaram de mim só eram superados pela percepção de que o cano da arma era frio, muito frio. Um frio que ainda sinto quando me reporto a esse momento. Não sei quanto tempo durou aquele contato. Lembro vagamente de ter dito ao soldado que eu ia pra aula (como se a minha indumentária já não revelasse suficientemente) e de ter ouvido em resposta algo como “não vai ter aula mais não”, sem retirar o cano que encostava em minha face.

Saí dali cabisbaixo, atordoado, com medo de ser preso, de estar cometendo alguma infração, com medo de chegar em casa e ser acusado de estar filando aula, com medo de ser perseguido pelo soldado, com medo de tomar um tiro pelas costas, com medo, enfim…

Esse foi o meu primeiro contato com o Golpe Militar de 1964. Ainda tenho medo. Mas minha ingenuidade acabou quando tocada pela frieza daquele cano de metralhadora.

Não pude reagir à época. Nos anos subsequentes, além de participação numas greves, assembleias, passeatas e comícios, composição de paródias contra o regime, pouco fiz para lutar contra a ditadura militar que durou 21 anos da minha vida. Agora estou velho, mas não velho demais para dizer aos filhos da puta que querem reviver um golpe militar em meu país, que se eu pressentir a ameaça do frio de um cano de metralhadora no nariz de novo, não estou disposto a meter o rabo entre as pernas, dar as costas, deixar barato e ficar por isso mesmo.