sábado, 1 de junho de 2024

Apuros de turista brasileiro

 


Lembrei de uma experiência de viagem que ocorreu comigo na Espanha. Foi uma vivência relativamente tensa e exasperante, mas, aos olhos de hoje, pode até ser considerada divertida para quem dela toma conhecimento com esta narrativa - e mesmo para mim, que a protagonizei com o coestrelato de minha mulher.

Era início de 2004. Estávamos num tour entre Espanha e Portugal. No hotel de Lisboa, o guia espanhol pediu um passaporte de cada membro de casal para o check-in e os entregou posteriormente à recepção. Eu esperava que depois ele me devolvesse o documento, mas parece que fui o único a pensar assim. Todos os outros viajantes passaram depois na recepção e pegaram seus respectivos passaportes e eu fiquei na espera de que o guia o fizesse para mim e mo devolvesse, uma vez que ele era quem havia tomado o passaporte de minhas mãos. O fato é que quando o ônibus já estava em movimento para deixar Lisboa, fui até o guia para cobrar o meu documento e ele me olhou incrédulo e só faltou dizer “Tolinho, você mesmo não foi pegar o seu na recepção como todos os outros viajantes a bordo?”. Coincidentemente, todos os outros passageiros falavam espanhol e se comunicavam alegremente com o guia e dele recebiam orientações e instruções, enquanto nós, os únicos brasileiros, nos mantínhamos discretos e por vezes alheados por escolha própria, mas deixávamos de receber algumas informações privilegiadas, embora não tivéssemos qualquer dificuldade em entender o que quer que fosse dito por eles (a recíproca talvez não fosse verdadeira).

Estávamos ainda perto do hotel, mas o guia não se deu ao trabalho de retornar. Seguimos viagem, pegamos a estrada, ele telefonou para a recepção e me disse que eles iriam enviar meu passaporte para a unidade da mesma rede hoteleira em que nos hospedaríamos no nosso destino seguinte, que era o Porto. Acertou quem deduziu que os prestativos portugueses não fizeram o envio. Disseram não ter achado portador, por ser domingo, e mandaram um fax com cópias das páginas do passaporte contendo a numeração e dados de identificação, coisas que o guia me assegurou ser suficientes caso eu fosse requisitado pelas autoridades locais a apresentar meu passaporte. O hotel ficou então de remeter o meu passaporte para a sede da operadora de turismo, em Madri, cuja chegada deveria se dar no dia seguinte ou dois dias depois, na pior das hipóteses, e eu iria recebê-lo em mãos dali a cinco dias, quando o tour retornasse a essa cidade.

Confesso que não eram notícias tranquilizadoras, mas eu não tinha muito a fazer, a não ser torcer para não ser detido por uma autoridade qualquer por não portar meu passaporte, além de cobrar do guia, periodicamente, notícias sobre a chegada da remessa lusa de um passaporte tupiniquim para a capital da monarquia espanhola.

Depois de percorrer a Galícia, Leon, as Astúrias e a Cantábria, ao incessante som do Coldplay cantando Yellow – que era o único CD que o guia possuía a bordo -, finalmente retornamos a Madri. Fui avidamente resgatar meu passaporte que devia estar de posse do pessoal da operadora, mas disseram-me displicentemente que não havia chegado de Portugal.  Meu voo de regresso ao Brasil era no dia seguinte. Um furor uterino, se eu tivesse sido dotado com esse órgão, se apossou de mim. Minha mulher já vinha até reclamando da minha calma e passividade diante da situação, desde a saída de Lisboa. Desfilei uma série de impropérios multilíngues, acusações à competência histórica de todos os povos da Península Ibérica e adjacências, ataques enviesados e diretos ao guia, enfim: promovi um espetáculo de baixaria digno da indignidade que me estava vitimando.

Naquele fim de tarde não era mais possível tomar nenhuma providência, além de procurar o endereço do consulado brasileiro. Logo cedo pela manhã fomos até lá – ficava até perto de onde estávamos hospedados eu e minha mulher. Lá nos deparamos com a informação de que o horário de funcionamento era das 11:00h às 13:30h. Havia uma pequena fila formada na escada que dava para a porta da sala do consulado. Quando fui atendido, a gentil senhora atendente me fez saber que eu teria que dar queixa na polícia de furto do meu passaporte, trazer o registro da mesma e 2 retratos 5x7 (lembram?). Fui na delegacia mais próxima e fiz essa declaração falsa de que o passaporte houvera sido furtado. Depois fui procurar onde tirar as fotos nesse tamanho não usual que era usada nos nossos passaportes. Informaram-me que havia um estúdio fotográfico num local lá no centro de Madri que fazia tais fotos. Por curiosidade, olhei a minha carteira e descobri 2 fotos 5x7 de datas diferentes, sobressalentes de obtenção do atual e de passaporte anterior. Voltei ao consulado esbaforido. Já eram quase 13:00h. Quando fui atendido, a gentil senhora pegou o registro da queixa, olhou contrafeita para as minhas fotos e pediu meu documento de RG! Eu lhe perguntei o que me aconteceria se esse documento também tivesse sido furtado? Ela não me deu resposta. Entreguei-lhe minha carteira de médico. Ela aceitou e aí veio a cereja do bolo: pediu comprovantes de voto das últimas eleições!!! Sabem o que aconteceu? Eu tinha! Sabe aqueles papeizinhos que lhe entregavam na sessão eleitoral após o ato de votar? Estavam armazenados num compartimento da minha carteira, desde a eleição de Prudente de Morais!! Haha! Não me recordo a cara que a gentil espanhola fez ao me ver brandindo esses improváveis comprovantes.

Aí ela levou a papelada pro Cônsul e voltou com uma autorização de regresso ao Brasil, com uma das minhas fotos coladas no documento.

Aliviados, retornamos ao apart hotel em que estávamos hospedados. Na recepção se encontrava um envelope com o meu passaporte... É mole?

Ah, e não usei o tal documento do consulado. Passei no controle de passaportes com meu documento original (mesmo já tendo sido informado à polícia que ele havia sido furtado e, no mínimo, deveria estar numa lista suspeita). Que eficiência questionável desse sistema...

Para finalizar essa aventura, a Varig estava com overbooking. Ofereciam mundos e fundos para quem desistisse da viagem naquele voo e adiasse para o dia seguinte. Eu e minha mulher fomos chamados ao balcão. Pediram os nossos cartões de embarque (que eram da Classe Econômica) e uma mulher os rasgou, picotou, na nossa cara! Minha mulher levou as mãos à boca e me olhou atônita. Em seguida nos entregaram 2 outros cartões de embarque com assentos na Classe Executiva. Acho que, depois de tudo, fizemos jus!