terça-feira, 20 de novembro de 2007

Versos da Canção

                                             Versos da Canção

Muito já se escreveu sobre qual seria o verso ou a estrofe mais bonita, poética ou estética da Música Popular Brasileira. Até mesmo teses acadêmicas foram feitas tendo como alvo de estudo, por exemplo, as aliterações contidas na música "Januária", de Chico Buarque (Toda a gente homenageia Januária na janela).

Até a década de 1960, havia um certo consenso, por influência da opinião do poeta Manuel Bandeira, de que o verso mais bonito da MPB era "Tu pisavas nos astros, distraída", da música "Chão de Estrelas", letra de Orestes Barbosa - há quem diga que o certo é "Tu pisavas os astros, distraída". Caetano Veloso, em "Livro", vem com uma paráfrase muito boa: "Tu pisavas nos astros, desastrada". Pra quem não lembra, esses "astros"  da música original seriam o resultado de pontos de luz projetados pela Lua no chão do barraco (e olhem que a Lua "furava" o zinco do teto). Realmente é uma imagem e tanto, ainda por cima com a distração da mulher, flanando, enquanto pisoteia os pobres dos astros.

Ninguém nunca discordou muito dessa opinião, mas algumas vozes advogavam em favor dos versos "Tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor", da música "A Flor e o Espinho", letra de Guilherme de Brito - lembram-me o primeiro carro velho que tive. Ou "Vista assim do alto/ mais parece um céu no chão", de "Sei lá, Mangueira", letra de Hermínio Bello de Carvalho, que sempre me faz questionar se é uma referência à favela vista de cima ou se ilustra a visão privilegiada da cidade que se tem a partir do morro - seja o que for, o que há no chão está muito longe de parecer um céu, seja de longe ou de perto, no meu ponto de vista. Sem esquecer da linda imagem evocada em "Asa Branca", letra de Humberto Teixeira, pelos seus famosos versos "Quando o verde dos teus óios se espaiá na prantação" - por causa disso, eu passei anos procurando uma namorada que tivesse esses olhos esmeralda com superpoderes de transformar a vegetação seca em verdejante; acabei me conformando em esverdear o mundo apenas com o uso das lentes dos meus óculos Ray-Ban (conta-se que um criativo fazendeiro nordestino utilizou-se, com sucesso, desse mesmo artifício para fazer os seus bois comerem a pastagem seca).

Entre as estrofes mais citadas como merecedoras do título de mais bela da MPB, encontra-se, indefectivelmente, aquela do compositor mangueirense Cartola, na música "As Rosas não Falam", quando diz: "Queixo-me às rosas/ mas que bobagem, as rosas não falam/ simplesmente as rosas exalam/ o perfume que roubam de ti". Eu também gosto muito dessa estrofe, principalmente porque confirma a sanidade mental do saudoso Cartola, ao constatar que os vegetais de então não tinham cordas vocais, para dizer o mínimo. No futuro, com o progresso da transgenia, quem sabe...

Em matéria de estrofes bonitas, Chico Buarque pode figurar fácil numa relação das 10 mais através de "Como, se na desordem do armário embutido/ meu paletó enlaça o teu vestido/ e o meu sapato ainda pisa no teu", da música "Eu te amo" (hino do descasamento) ou "Te perdoo porque choras/quando eu choro de rir/ te perdoo por te trair", da música "Mil Perdões" (adultério plenamente justificado). O poetinha Vinícius de Moraes também compareceria com "A felicidade é como gota de orvalho numa pétala de flor/brilha tranquila, depois, de leve, oscila/e cai como uma lágrima de amor", escrita em "A Felicidade", música que começa dizendo "Tristeza não tem fim/ Felicidade, sim" - deveria se chamar “Triste Felicidade”.

Não sei se por deformação de caráter ou por uma exasperante capacidade de perceber sutilezas insuspeitadas, mas o fato é que a minha preferência recai numa estrofe que nunca é citada pelos expertos. Para mim os versos mais significativos da MPB são: "Fui passear na roça/ encontrei Madalena sentada numa pedra/ comendo farinha seca/ olhando a produção agrícola e a pecuária", do compositor Isidoro, na música "Madalena", que alguns conhecem como “Entra em beco, sai em beco”, principalmente a nova geração que foi apresentada à musica, há uns anos, através da regravação feita por Gilberto Gil.

O fato é que enxergo inúmeras facetas nessa singela estrofe. Primeiro: “passear na roça” já me transporta para o ambiente rural, bucólico, que me é muito familiar. Era comum ir fazer um passeio na roça. Era como ir a um Shopping. Tinha muito atrativo, pelo menos pra mim. Hoje ninguém vai mais passear na roça. Todo o mundo quer é se picar da roça. No máximo, o pessoal quer mesmo é se roçar!

Mas vamos adiante para o ponto principal e nevrálgico: observem que a pobre da Madalena se encontra em pleno estado de abandono, numa solidão só comparável à solidão de Deus, sentada numa pedra e fazendo sua refeição, num cardápio composto por um único item: farinha seca! Isso é a cara da nossa gente. Se isso não bastasse, Madalena ainda está contemplando a “produção agrícola e a pecuária”! Vejam que o autor Isidoro não se utilizou da linguagem que a retratada Madalena usaria e que provavelmente seria “a prantação e os boi”. Madalena está ali olhando uma propriedade rica, produtiva e que certamente não lhe pertence. Está diante de uma fartura de alimentos enquanto come farinha seca.

Não conheço melhor síntese das nossas desigualdades. Solidarizo-me com essa coitada. Tenho a mesma sensação madalênica quando me vejo sentado diante da TV assistindo a um jogo de campeonato europeu, com times cheios de craques caríssimos, enquanto meu time aqui está na terceirona e sem dinheiro para pagar até a lavadeira. Mas isso já vai dar um outro samba.