sábado, 5 de janeiro de 2008

Pobreza Franciscana

Pobreza Franciscana

Não é que eu seja supersticioso ou místico. Mas digamos que eu saiba me render às evidências. Que saiba distinguir o que sejam sinais inequívocos. Perceber rastros nas nuvens.

Esse vago preâmbulo é para introduzir uma história que, possivelmente, levará os que me lêem a duvidar da minha já precária sanidade mental. A história é longa e com desdobramentos, mas eu vou tentar dar uma resumida para caber aqui no exíguo espaço que me cabe nesse hiperespaço e com o qual tenho que me dar por satisfeito (e já estou desperdiçando preciosas linhas com essas tergiversações).

Pelo título, os mais atentos já devem ter concluído que vou falar de São Francisco (de Assis) e, por conseqüência, de pobreza ou carência de bens materiais - para ser mais exato.

Meu primeiro encontro cara a cara com São Francisco foi no filme Irmão Sol, Irmã Lua. Fiquei totalmente fascinado com aquele pequeno grande homem, embora não possa negar que, estando em pleno exercício dos estímulos hormonais da puberdade, tenha-me deixado fascinar também pela atriz que interpretava Santa Clara, uma lourinha linda, com uns olhos luminosos e que... bom, é melhor deixar pra lá! Nesse filme, uma das imagens mais marcantes é quando Francisco se despoja de suas roupas e sai nuzinho da silva da casa do pai, que era um rico comerciante, para ilustrar a sua decisão de se desapegar das riquezas e passar a viver dando valor às coisas simples, dedicando-se a ajudar e exaltar os mais humildes, conforme conteúdo das famosas palavras de Jesus no Sermão da Montanha.

Sob uma perspectiva psiquiátrica atual e também na opinião dos contemporâneos de então, Francisco havia pirado total! Ouvia vozes e, numa dessas revelações, consta ter ouvido Jesus lhe pedindo para reconstruir Sua igreja. Entendeu ao pé da letra: passou a efetuar o reerguimento, pedra por pedra, de uma pequena igreja que ficava numa planície logo abaixo de Assis. Começaram a aparecer adeptos daquele estilo de vida paleohippie e algum tempo depois foi criada a Ordem dos Franciscanos, cujo lema é “Paz e Bem” e que tinha horror a bens. Os únicos pertences possíveis eram as sandálias e o hábito, que, nesse caso, faziam o monge.

Quando era estudante de medicina, meu primeiro trabalho remunerado foi no Retiro de São Francisco, atendendo aos pobres das redondezas. Quis o destino que a mulher que escolhi para namorar, noivar, casar e apoquentar, fosse uma devota de São Francisco. Achei legal a devoção, a princípio. Ainda namorados, ambos fizemos “Cursilho” da Igreja no mesmo Retiro de São Francisco. E tudo era uma maravilha. Casamos. Eu estava ainda no quinto ano da faculdade. O dinheiro era pouco, mas o fogo era muito. Eu e ela no apartamento quarto e sala reversível para kitchenette, jogando soltos, até o dia em que ela foi buscar a imagem do dito santo que ficara na casa de sua mãe, ali mesmo no Largo Dois de Julho. Passamos a ser três. Mas não por muito tempo. Logo minha irmã veio do interior para morar em Salvador e a instalamos no sofanete da sala do microapartamento.  

A situação começou a ficar apertada e não só no aspecto físico. A comida começou a ser disputada na base das artes marciais. Para testar a minha devoção, só pode ter sido isso, meu irmão, que trabalhava num banco no Campo Grande e morava num pensionato nas minhas proximidades, também decidiu acorrer de vez em quando ao meu apartamento para fazer uma boquinha na hora do almoço. A luta pelas migalhas tornou-se acirrada. Como ainda não era o apocalipse, o porteiro descobriu os dons filantrópicos de minha mulher e passou a aparecer com cara de pidão e uma marmita vazia nessas mesmas horas estratégicas. Mas aí, finalmente, chegou o Armagedom, o tsunami, as dez pragas do Egito: os parentes próximos e distantes do interior, os conhecidos acompanhados de desconhecidos, que vinham enfrentar a fila do INPS da Rua Carlos Gomes, resolveram dar o ar da graça. Deviam achar que eu estava em vias de me candidatar a algum cargo político ou que meu apartamento era um albergue do Caminho de Santiago. Chegavam em romaria. Incessante. Uma “comovente” peregrinação. Interminável. Pensei em estabelecer um sistema de cotas raciais ou de senhas para ingresso ao recinto e usufruto de repasto. Desisti, porque não teria dinheiro nem para o papel onde escreveria os números.

Num desses dias em que eu ficara em jejum involuntário para atender à demanda nutricional dos visitantes, fui até o quarto e olhei com um jeito pouco amistoso para a imagem de São Francisco que pousava placidamente sobre a cômoda. Pensei comigo e com esperança que ele estivesse ouvindo meus pensamentos: “Isso já passou dos limites! Essa imagem é que está atraindo esse meu estado de penúria”. Comuniquei minha dedução lógica à minha mulher. Ela me olhou consternada, com cara de quem estava perdendo o marido para o manicômio e, numa desesperada tentativa de me salvar, acatou a minha decisão de exilar a imagem. Foi devidamente devolvida à casa da minha sogra, em cortejo solene.

Minha sogra estava vivendo razoavelmente bem com a pensão que meu sogro recebia. Era a minha tábua de salvação quando eu me via ameaçado pelo escorbuto, beribéri e inanição. Quebrava o meu galho com umas comidinhas deliciosas e mesmo com uns empréstimos monetários, quando não chegava a ser doação mesmo. Pouco tempo depois de receber o santo de volta, a situação começou a se inverter completamente: a pensão do meu sogro ficou congelada, sem aumento para acompanhar a inflação, e eu comecei a me recuperar daqueles percalços que eu imputava à presença do São Francisco (para mim, já sem sombra de dúvidas, um gigantesco imã para atrair pobreza). Quando eu revelei à minha sogra essa minha suspeita, ou total certeza - advinda dos fatos -, ela não teve dúvidas: vestiu a roupa de ir à missa, embrulhou a imagem e rumou para uma igrejinha próxima onde, furtivamente, deixou a imagem num altar lateral. Ficou ainda por instantes na igreja e viu que uma beata se apoderara da imagem e a levara. Não sei o destino dessa pobre criatura, mas minha sogra, a partir de então, voltou a prosperar.

Consegui comprar um apartamento pelo Sistema Financeiro da Habitação (bem longe do posto do INSS). Na época já estava com dois filhos e às vésperas do terceiro. Sentindo-me seguro e confiante diante da nova situação financeira, nem me abalei quando minha comadre deu de presente à minha mulher uma imagem, de cerâmica de Caruaru, com a representação do que parecia ser São Francisco, portando umas toscas pombas de barro nos ombros. Deduzi que era totalmente inofensiva, porque só com muito boa vontade para ver o santo ali: para mim era um baixinho barbudo, com roupão de banho, cheio de passarinhos. Passou algum tempo e minha mulher foi parir. O obstetra e o pediatra que eram  amigos, além de colegas, não cobraram honorários. Mas o anestesista não aliviou. O baque foi acrescido pela conta das diárias da maternidade. Tive que optar entre as prestações do apartamento e o pagamento dessas contas. Resultado: fiquei inadimplente com a empresa de crédito imobiliário. Meu nome acabou saindo no jornal na longa lista dos caloteiros e vieram as ameaças de ter o apartamento tomado e leiloado caso não quitasse a dívida, que já era bem volumosa àquela altura. Fui até o Comércio, na sede do grande banco baiano que era proprietário da “Caderneta de Poupança dos três sacis”, para negociar a dívida. Na ante-sala da diretoria vi algo bastante preocupante: uma gigantesca imagem de São Francisco! Os mais velhos devem saber exatamente o que aconteceu a essas instituições financeiras. Eu tenho certeza que não contribuí para a falência delas, porque tive que vender alguns pertences e raspar o tacho para quitar o débito. Mas aquela imagem lá... sei não!

A vida seguia apertada. As contas dos cartões Mesbla, Sandiz e Hiper, cada vez mais impagáveis. Certo dia, enquanto eu tinha uma crise de riso nervoso diante dos formulários do Imposto de Renda e dos carnês do Crédito Educativo, minha visão focalizou a imagem de barro do pretenso São Francisco, que sobrevivia impávida ao lado da minha cama. Num impulso rápido o suficiente para não retroceder diante das possíveis conseqüências, peguei a imagem e a arremessei pela janela. A intenção era que ela se espatifasse no estacionamento do Centro Médico vizinho ao meu prédio. Acreditem: a dita cuja aterrissou caprichosamente em meio às plantas ornamentais de um canteiro suspenso do Centro Médico. Confesso que fiquei aliviado. Quem sabe que pragas outras poderiam se abater sobre mim com aquele santo de barro multiplicado em dezenas de pedaços nas minhas cercanias. O referido prédio do Centro Médico estava sendo pintado na lateral e o trabalho já havia avançado até a metade. A obra foi paralisada desde então (não fiquei sabendo ao certo o porquê, mas guardava minhas suspeitas). O prédio ficou com duas cores (branco gelo e acinzentado mofado), e assim permaneceu por vários anos. A agência bancária que havia lá também passou a ser vítima de seguidos assaltos. “Coincidentemente”, o trabalho de pintura recomeçou e foi finalizado quando, anos depois, o canteiro suspenso foi cimentado para ser colocada uma grade. Os assaltos à agência bancária já haviam parado de ocorrer pela simples razão de que ela não resistira e houvera sido fechada meses antes de a imagem ser finalmente retirada.

A minha vida foi melhorando e consegui comprar uma casa de praia em Arembepe.  Passei a freqüentar um barzinho do qual eram fregueses alguns amigos meus que já tinham casa de veraneio lá. O nome do bar escrito na parede era um, mas na nota fiscal o nome era Bar e Restaurante São Francisco! Já fiquei com a pulga atrás da orelha. Adivinhem quem é o padroeiro daquela aprazível localidade? Pois é: ele mesmo. A descoberta deu-se assim que houve uma tempestade, acompanhada de uma terrível ressaca no mar, e a igrejinha foi seriamente danificada. Obviamente bateram à minha porta para pedir donativos destinados à reconstrução. Contribuí relutantemente com o Livro de Ouro, mas minha mulher se empenhou bastante, comprou milhares de bilhetes de rifas, Raid das Moças, pagou dízimos, deu óbolos, quase a ponto de dilapidar nosso claudicante patrimônio. A igreja foi finalmente reconstruída e milagrosamente está lá de pé até o momento. Mas tive que contribuir também com uma cota substancial para a reforma do bar, que estava aos pedaços. Para tanto, lancei mão do dinheiro que estava juntando para reformas na minha própria casa. O Bar São Francisco era mais importante. Quando contei ao proprietário os meus delírios a respeito da pobreza franciscana, ele, mais que depressa, mudou o nome do bar. Vai bem, obrigado.

Fiz minha primeira viagem à Europa e fui direto conhecer a Itália. Como não podia deixar de ser, o roteiro incluía a cidade de Assis. A primeira atração turística que conheci foi a Igreja de Santa Maria degli Angeli, construída para englobar a igrejinha da Porciúncula, uma das que São Francisco reconstruiu com suas próprias mãos. Enquanto minha mulher ficava lá em interminável genuflexão rezando, persignando-se e chorando emocionada, eu fui dar uma volta no interior da igreja e vi uma seta indicando o “Roseiral”. Fui seguindo as indicações que me guiavam num labirinto de rampas descendentes e sentindo cada vez mais forte um perfume intenso de rosas. Fiquei imaginando o tamanho desse “Roseiral” e a quantidade e diversidade de flores que ia encontrar. Finalmente me deparei com um amplo espaço que se abria para o céu e continha inúmeras leiras vazias – uma pobreza!. No meio desse jardim apenas uma única rosa. Imensa, sem espinhos. Fiquei arrepiado com aquele negócio. Que rosa era aquela? Li numa placa que aquela rosa só dava ali. Não sei se é mesmo verdade, mas até hoje não encontrei explicação plausível para explicar a intensidade do odor de rosas que me atingiu tão longe e que exalava desse único exemplar. Esse São Francisco realmente adora me pregar peças e me por à prova - pensei, enquanto enxugava minhas lágrimas. Meses depois do meu regresso, houve um intenso terremoto na Úmbria, sacudindo Assis, e essa igreja parece ter sido duramente atingida, pois até hoje não tenho notícia de sua reabertura ao público.* Será que...? Hum... Não. Acho que não!

Fui enviado para fazer um curso de medicina do trabalho** nos Estados Unidos. Relutei bastante ao saber que o local seria a cidade de San Francisco, Califórnia. Não bastasse o meu histórico de relações tumultuadas com o santo em questão, meus remotos conhecimentos de geografia ginasial me davam conta que essa cidade fica em cima da famosa “falha de Santo André” - que é um miserê geológico responsável pela frenética atividade e instabilidade sísmicas daquela região. Já houvera um terremoto bem razoável no início do século XX e todo o mundo sabe que, a qualquer momento, lá vai ocorrer um graúdão já chamado previamente de Big One. Entretanto, enchi-me de coragem e de argumentos lógicos, estatísticos e científicos, para desconsiderar totalmente a hipótese de ser brindado com essa “graça”. Passei a nem cogitar a possibilidade de um tremorzinho tipo Very Small One. Sou homem e não um saco de pipocas! E aquele povo todo mora lá em San Francisco numa boa (em vários sentidos), é uma Salvador sem favelas, teve o flower power ("if you're going to San Francisco, be sure to wear some flowers in your hair"), não vai acontecer nada de desastroso.

Num belo dia, num dos intervalos do curso, subi até o meu quarto no hotel e fui ao banheiro. Quando estava sentado na privada cantando I left my heart in San Francisco e deixando lá algo além do meu coração, senti a porta entreaberta começar a tremer. Começou e continuou tremendo. Mudei logo de música para Put the blame on Mame. Eu ainda não me encontrava nas condições higiênicas ideais para me desvencilhar imediatamente do vaso. Hoje eu tenho consciência que aquilo durou apenas alguns segundos, mas pareceu tempo suficiente para ver o filme da minha vida, cuja cena final incluía um grupo de buscas, chefiado por aquele bombeiro mexicano que pinta em tudo que é terremoto, me encontrando nos escombros com minhas calças na mão e o traseiro encravado na privada. Não era o fim mais digno que eu poderia esperar para a minha existência fugaz e nada marcante neste planeta. Graças a São Francisco que, creio, bateu um papo com Santo André pedindo para estabilizar a falha e ter misericórdia para com aquele pobre pecador em situação tão vexaminosa, fui poupado. Viva São Francisco!

* Um esclarecimento que só me foi possível fazer quando retornei a Assis em 2017 e pude revisitar a Igreja de Santa Maria degli Angeli foi que o forte cheiro de rosas que eu percebi e atribuí à única rosa que havia no roseiral era proveniente de uma fabriqueta de terços, com os "mistérios" (contas)  feitos de pétalas de rosas comprimidas, a qual parece estar estabelecida ali por perto.

** Há pouco tempo fiquei sabendo que o dia do médico do trabalho é comemorado em 04 de outubro, data de nascimento do médico italiano Bernardino Ramazzini (considerado o pai da medicina do trabalho), e esse dia, mui coincidentemente, também é o dia de São Francisco de Assis.