(A José Hanimann Freire, meu neto)
Eu não estou morrendo nesse exato
momento, mas estou a caminho (como todo o mundo). Os dias parecem sofrer uma
aceleração nessa direção quando a gente envelhece. E sinto que urge deixar
alguns conselhos sábios.
Desses com frases feitas que ficam
gravadas na memória e são oportunamente evocadas e citadas. Desses que socorrem
nos momentos de incerteza, insegurança, indecisão. Desses a que se recorre para
dar a impressão de ter aprendido algo na vida. Desses que indicam experiência
que passa de geração em geração. Desses que mostram preocupação em dar conforto
e apontar direção.
Preciso deixar palavras que reforcem
os gestos de afeição que supus demonstrar, mas na verdade não se concretizaram
eficientemente. Preciso escolher palavras que abracem. Palavras que sejam como
a minha mão estendida a meu neto oferecendo a ponta dos dedos para serem
seguros por mãos pequeninas que me conduzam cumplicemente para onde desejem e
signifiquem um suporte seguro. Palavras que beijem e façam cócegas.
Preciso deixar algo e
nada me ocorre. Aliás, ocorre-me que não disponho de palavras de sabedoria.
Eu poderia dizer a meu neto que nem a
geografia nem a ancestralidade o definem nem devem limitá-lo; que o mundo
natural tem beleza e mistério suficientes para evitar a necessidade de ficar
voltado para seres imaginários, sucumbindo à tentação preguiçosa de aceitar
explicação mágica para algum fenômeno e criar explicações sobrenaturais para o
que ainda não tem uma explicação científica aceitável. Por isso, onde houver fé
(acreditar sem que haja prova), opte pela dúvida, pela incredulidade. Exercite
seu saudável poder de questionamento. Diria que não precisa chegar ao ponto de
afligir os confortados por lendas e mitos, sem que tenha sido provocado ou
ameaçado por essas pessoas (que são quase a totalidade dos que estarão ao seu
redor). Caso lhe peçam para exprimir o seu ponto de vista, revele-o com
tranquilidade e sem arrogância, ressaltando a falta de evidências ou de lógica como
justificativa para sua eventual incredulidade.
Recomendaria, portanto, que você não
se abstenha do uso dos recursos da sua mente destinados àquilo para o qual ela
foi “projetada”: pensar, raciocinar, refutar, aquiescer, sonhar, fantasiar,
desejar, apaixonar-se, criar, questionar e, eventualmente, abandonar algumas
certezas se as respostas aos questionamentos apontarem para novas evidências
que invalidem o que se convencionava ser a explicação de algo. Atenção: o
pensamento não peca jamais! Aliás, pecado é uma das invenções humanas feitas
para exercer controle sobre os outros.
Poderia dizer que a existência é
destituída de um sentido, de um papel a ser cumprido necessariamente, de algum
propósito elevado (biologicamente o nosso propósito é reproduzir), que a vida
não é previamente roteirizada, mas um constante improviso, para o qual compensa
adquirir conhecimentos e ter educação formal e, aí sim, dar a ela o sentido e a
dimensão que você quiser. Por falar em dimensão, diria que convém pensar na
dimensão do Universo e a partir disso posicionar seu ego.
Poderia dizer que não há mérito em não
fazer mal aos outros só para evitar ser colocado numa câmara de torturas, após
a morte, por uma entidade sádica que anda por aí catalogando nossos deslizes,
como também é extremamente hipócrita agir com correção apenas pela expectativa
de vir a ser recompensado com benesses eternas em algum lugar que pretensamente
possa existir após a morte. Não seja puxa-saco de entidades metafísicas. Fazer
o bem (agir de forma a não causar deliberadamente sofrimento a outro ser) é bom
porque é bom e fazer o mal (o oposto do bem) é mau porque é mau (constata-se na
prática cotidiana, no princípio da ação e reação), e isso deve nos bastar. Se
você quiser complicar essa simplificação buscando definir amplamente o que é
bem e bom e mal e mau, em termos filosóficos, bom para si, mau para o
outro, bem pessoal e mal coletivo, etc, boa sorte! Não cheguei a tanto.
Que tente não contribuir para piorar o
mundo que encontrou. Se conseguir torná-lo melhor, por ínfima que seja a sua
contribuição, uau! Também posso dizer que não tenho experiências que possam
estabelecer um modelo a ser reproduzido, pois a experiência pode ser apenas uma
lanterna iluminando retrogradamente um caminho já percorrido e que não mais
será trilhado.
Diria que a honra de uma pessoa é um
atributo pessoal. Honra não é reputação exterior, mas integridade moral
individual. Portanto a sua honra (ou desonra) não deve ser deslocada para
o comportamento de alguém ou grupo que lhe seja próximo. Sua honra ou desonra
nunca estará no comportamento de uma namorada, esposa, irmã, irmão, pai, mãe,
parente, amigo ou correligionário. Mas, sim, decorrerá unicamente do seu
comportamento, das suas palavras e ações.
Alertaria que o respeito às tradições
não deve ser uma coisa absoluta. Aliás, que as transgressões podem ser muito
saudáveis e úteis, embora possam ser perigosas em certos contextos. Que
não se deve obedecer sempre, mas convém não desobedecer
sistematicamente. Um bom cálculo sobre as consequências dessas transgressões
e busca de salvaguardas é conveniente, embora às vezes o ímpeto da juventude e
a sensação de invulnerabilidade muitas vezes tendam a embotar um discernimento
prévio ou qualquer reflexão nesse sentido. Encontrar esse equilíbrio entre
a obediência ao adestramento e a rebeldia contra essa programação será uma
tarefa pessoal e intransferível. Sobre esse tema da tradição pela
tradição, quanto ao absurdo que isso pode representar, recomendo ler o conto
"A Loteria", de Shirley Jackson. Mas o essencial será ter a
consciência de que você não foi feito para se curvar ante qualquer comando como
um autômato ou adotar qualquer comportamento porque o rebanho faz isso desde
sempre ("com quantos quilos de medo se faz uma tradição?" - Tom Zé,
Senhor Cidadão, 1972).
Ressaltaria que meus erros vários e
meus escassos acertos só serviram para mim e não os recomendaria como exemplo -
isso representaria um engodo, uma fraude, no mundo do conselho sábio. Por isso
vou deixar apenas o meu aceno, originado na humildade esculpida pela já longa
vivência, no bom senso e na franqueza; vou oferecer o meu olhar maravilhado e
enternecido pelo meu neto; e manter a minha mão alcançável e o meu colo
disponível.
Eu não estou morrendo nesse exato
momento, mas temo morrer sem ter sido exato em algum momento. E, para ser
exato, eu não quero que me vejam morrer ainda mais, por fazer tão pouco e
deixar quase nada.