terça-feira, 10 de março de 2020

Eu, José





(A José Hanimann Freire, meu neto)

 

Eu não estou morrendo nesse exato momento, mas estou a caminho (como todo o mundo). Os dias parecem sofrer uma aceleração nessa direção quando a gente envelhece. E sinto que urge deixar alguns conselhos sábios.

Desses com frases feitas que ficam gravadas na memória e são oportunamente evocadas e citadas. Desses que socorrem nos momentos de incerteza, insegurança, indecisão. Desses a que se recorre para dar a impressão de ter aprendido algo na vida. Desses que indicam experiência que passa de geração em geração. Desses que mostram preocupação em dar conforto e apontar direção.

Preciso deixar palavras que reforcem os gestos de afeição que supus demonstrar, mas na verdade não se concretizaram eficientemente. Preciso escolher palavras que abracem. Palavras que sejam como a minha mão estendida a meu neto oferecendo a ponta dos dedos para serem seguros por mãos pequeninas que me conduzam cumplicemente para onde desejem e signifiquem um suporte seguro. Palavras que beijem e façam cócegas.

Preciso deixar algo e nada me ocorre. Aliás, ocorre-me que não disponho de palavras de sabedoria.

Eu poderia dizer a meu neto que nem a geografia nem a ancestralidade o definem nem devem limitá-lo; que o mundo natural tem beleza e mistério suficientes para evitar a necessidade de ficar voltado para seres imaginários, sucumbindo à tentação preguiçosa de aceitar explicação mágica para algum fenômeno e criar explicações sobrenaturais para o que ainda não tem uma explicação científica aceitável. Por isso, onde houver fé (acreditar sem que haja prova), opte pela dúvida, pela incredulidade. Exercite seu saudável poder de questionamento. Diria que não precisa chegar ao ponto de afligir os confortados por lendas e mitos, sem que tenha sido provocado ou ameaçado por essas pessoas (que são quase a totalidade dos que estarão ao seu redor). Caso lhe peçam para exprimir o seu ponto de vista, revele-o com tranquilidade e sem arrogância, ressaltando a falta de evidências ou de lógica como justificativa para sua eventual incredulidade.

Recomendaria, portanto, que você não se abstenha do uso dos recursos da sua mente destinados àquilo para o qual ela foi “projetada”: pensar, raciocinar, refutar, aquiescer, sonhar, fantasiar, desejar, apaixonar-se, criar, questionar e, eventualmente, abandonar algumas certezas se as respostas aos questionamentos apontarem para novas evidências que invalidem o que se convencionava ser a explicação de algo. Atenção: o pensamento não peca jamais! Aliás, pecado é uma das invenções humanas feitas para exercer controle sobre os outros.

Poderia dizer que a existência é destituída de um sentido, de um papel a ser cumprido necessariamente, de algum propósito elevado (biologicamente o nosso propósito é reproduzir), que a vida não é previamente roteirizada, mas um constante improviso, para o qual compensa adquirir conhecimentos e ter educação formal e, aí sim, dar a ela o sentido e a dimensão que você quiser. Por falar em dimensão, diria que convém pensar na dimensão do Universo e a partir disso posicionar seu ego.

Poderia dizer que não há mérito em não fazer mal aos outros só para evitar ser colocado numa câmara de torturas, após a morte, por uma entidade sádica que anda por aí catalogando nossos deslizes, como também é extremamente hipócrita agir com correção apenas pela expectativa de vir a ser recompensado com benesses eternas em algum lugar que pretensamente possa existir após a morte. Não seja puxa-saco de entidades metafísicas. Fazer o bem (agir de forma a não causar deliberadamente sofrimento a outro ser) é bom porque é bom e fazer o mal (o oposto do bem) é mau porque é mau (constata-se na prática cotidiana, no princípio da ação e reação), e isso deve nos bastar. Se você quiser complicar essa simplificação buscando definir amplamente o que é bem e bom e mal e mau, em termos filosóficos, bom para si, mau para o outro, bem pessoal e mal coletivo, etc, boa sorte! Não cheguei a tanto.

Que tente não contribuir para piorar o mundo que encontrou. Se conseguir torná-lo melhor, por ínfima que seja a sua contribuição, uau! Também posso dizer que não tenho experiências que possam estabelecer um modelo a ser reproduzido, pois a experiência pode ser apenas uma lanterna iluminando retrogradamente um caminho já percorrido e que não mais será trilhado.

Diria que a honra de uma pessoa é um atributo pessoal. Honra não é reputação exterior, mas integridade moral individual. Portanto a sua honra (ou desonra) não deve ser deslocada para o comportamento de alguém ou grupo que lhe seja próximo. Sua honra ou desonra nunca estará no comportamento de uma namorada, esposa, irmã, irmão, pai, mãe, parente, amigo ou correligionário. Mas, sim, decorrerá unicamente do seu comportamento, das suas palavras e ações.

Alertaria que o respeito às tradições não deve ser uma coisa absoluta. Aliás, que as transgressões podem ser muito saudáveis e úteis, embora possam ser perigosas em certos contextos. Que não se deve obedecer sempre, mas convém não desobedecer sistematicamente. Um bom cálculo sobre as consequências dessas transgressões e busca de salvaguardas é conveniente, embora às vezes o ímpeto da juventude e a sensação de invulnerabilidade muitas vezes tendam a embotar um discernimento prévio ou qualquer reflexão nesse sentido. Encontrar esse equilíbrio entre a obediência ao adestramento e a rebeldia contra essa programação será uma tarefa pessoal e intransferível. Sobre esse tema da tradição pela tradição, quanto ao absurdo que isso pode representar, recomendo ler o conto "A Loteria", de Shirley Jackson. Mas o essencial será ter a consciência de que você não foi feito para se curvar ante qualquer comando como um autômato ou adotar qualquer comportamento porque o rebanho faz isso desde sempre ("com quantos quilos de medo se faz uma tradição?" - Tom Zé, Senhor Cidadão, 1972).

Ressaltaria que meus erros vários e meus escassos acertos só serviram para mim e não os recomendaria como exemplo - isso representaria um engodo, uma fraude, no mundo do conselho sábio. Por isso vou deixar apenas o meu aceno, originado na humildade esculpida pela já longa vivência, no bom senso e na franqueza; vou oferecer o meu olhar maravilhado e enternecido pelo meu neto; e manter a minha mão alcançável e o meu colo disponível.

Eu não estou morrendo nesse exato momento, mas temo morrer sem ter sido exato em algum momento. E, para ser exato, eu não quero que me vejam morrer ainda mais, por fazer tão pouco e deixar quase nada.


José, temos o mesmo nome, mas o seu veio para dar sentido ao meu e não o contrário. E você não sabe o que significou pra mim, num dia, saber que quando eu cheguei em casa e sumi da sua vista, você disse: “Eu vou atrás dele!”. Pois venha. Mas não espere nada grandiloquente. Só eu, José.




ESTÓRIAS BÍBLICAS ATUALIZADAS, AMPLIADAS E ANALISADAS



O mundo se acabando em água


O dilúvio universal ocorreu numa época em que não havia uma pessoa sequer na face da Terra que tivesse uma mísera embarcação; um barco qualquer; um bote; uma guiga; uma jangada; uma piroga; um tronco de bananeira; uma boia de câmara de ar de FNM...


Aí só quem pôde se salvar foi Noé, que houvera sido avisado com a devida antecedência (informação privilegiada) e, apesar de não ter qualquer know-how, construiu um enorme transatlântico, um Titanic de madeira, e lá colocou tudo quanto é casal de ser vivo, menos os dinossauros (que estavam destinados a perecer porque já tinham enchido as medidas), os peixes e anfíbios que já sabiam se virar adequadamente no meio aquático. Também foram excluídos todos os vegetais que, como se sabe, podem perfeitamente e sem exceção sobreviver submersos e no escuro por 40 dias. Os insetos deram trabalho para ser coletados  mas, assim que capturados, foram devidamente submetidos a um processo de hibernação (criogenia) para serem descongelados oportunamente.


Uma empresa de catering foi contratada para prover os diferentes alimentos de cada espécie pelos 40 dias da flutuação a esmo e pelos dias que se seguiram até que a oferta de alimentos na terra se normalizasse. Como não dava pra dizimar as formigas e cupins levados a bordo, os tamanduás tiveram que se conformar com uma papa de bunda de tanajura liofilizada que foi previamente providenciada pelos cientistas da família de Noé.

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Também foi contratado um serviço de limpa-fossa para dar conta dos dejetos gerados diariamente pelos animais, mormente os de grande porte.
Animais como os cangurus, coala, ornitorrinco e demônio da Tasmânia, finda a inundação, foram transportados por via aérea para a Oceania. Por isso não encontramos esqueletos dessa espécie em continentes outros.


Como o planeta todo foi inundado, podemos concluir que o nível das águas atingiu o topo das cordilheiras de todo o mundo e que, portanto, o volume de água existente no planeta se multiplicou enormemente para dar conta dessa tarefa (foi tanta chuva sendo gerada ininterruptamente que deve ter havido síntese de novas moléculas de água na atmosfera para formar novas nuvens carregadas) ou entâo toda a crosta terrestre afundou dramaticamente, inundando-se, e depois de 40 dias voltou a se elevar.


Enfim, foi mais uma demonstração de como os céus cuidam tão diligentemente de nós. Agora estou à espera do evento que me aterroriza desde a infância: que da próxima vez, o mundo vai se acabar em fogo!