sábado, 5 de novembro de 2022

Melody



No início da década de 1970 eu costumava assistir aos filmes do recém-criado “Corujão da Madrugada”. Num desses filmes, cujo nome não gravei na época e que abordava uma história de amor infanto-juvenil, eu ouvi uma música linda, e que ficou gravada em minha mente apenas pela palavra “Melody”, nome da menina protagonista, que era repetido no refrão. 

Fiquei intrigado para descobrir que música era aquela - não consegui ver os créditos. Pareceu-me soar como os Beatles, mas achei improvável eu nunca tê-la ouvido antes. Nenhuma pessoa amiga a quem perguntei pela música, citando as poucas características que tinha preservado na memória, a conhecia nem tinha meios de me ajudar. Lembro de ter imaginado que num futuro de ficção científica deveria haver recursos pra que a gente pudesse fazer uma busca, fosse com dados do filme ou assobiando ou solfejando a música e aí aparecendo o resultado por mágica na nossa frente.

 

O fato é que acabei por redescobrir (ou descobrir) quem cantava essa música, pouco mais de 10 anos depois, num dia de sábado pela manhã em que estava de plantão no Hospital do Tórax (atualmente Hospital Santo Amaro), e alguém na vizinhança do Cemitério do Campo Santo estava ouvindo um LP com sucessos dos Bee Gees, quando de repente o ar se encheu com os acordes e vozes da dita música. Foi um verdadeiro achado. Cheguei em casa exultante e disse pra minha mulher que tinha descoberto quem cantava a música que ela, assim como eu, tinha ouvido uma vez e achado que era som dos Beatles. Nós já tínhamos um álbum duplo de Greatest Hits dos Bee Gees, mas, obviamente, essa música não estava lá. 

 

Aí parti para uma busca desenfreada nas casas de discos e nas seções de música da Mesbla, Sandiz e Paes Mendonça. Como eu não sabia o título da música, a estratégia era pegar o disco, levar pra vitrola da loja, colocar os fones e ir passando faixa por faixa aquelas cujos títulos não me eram familiares. Foi uma mineração árdua e infrutífera por um bom tempo.

 

Apenas quando os CDs chegaram ao mercado foi que finalmente encontrei a gema preciosa. Numa coletânea com nem tão grandes sucessos dos Bee Gees, lá estava ela: Melody Fair! A última faixa do CD. Ufa! Finalmente! Levei meu troféu pra casa e toquei Melody Fair numa quantidade de repetições de causar o mesmo efeito ocorrido com o gato de João Gilberto (quem não souber da história, informe-se). Tentei tirar a letra completa, mas ficaram umas lacunas. Só tempos depois fui descobrir que o filme, de 1971, se chamava “Melody” e recebeu no Brasil o título de “Quando brota o amor”.

 

Todas essas lembranças me ocorreram agora, quando acabo de ver um filme em que no final tocou um blues que achei interessante e automaticamente peguei o celular, abri o aplicativo Shazam e imediatamente a música foi localizada, identificada e disponibilizada para eu ouvir e baixar se quisesse. Aquilo que eu um dia imaginei só ser possível na ficção, agora faz parte das possibilidades de maneira natural. Não há alardes, espantos nem admirações para esse feito tecnológico. Mas, pra mim, o Shazam é o melhor e mais inacreditável aplicativo disponível no mundo real, virtual, ficcional e afetivo. Minhas congratulações a quem criou. Só acho que podia se chamar Melody!

 

 Atualização: o Google passou a disponibilizar uma função de localizar músicas, na qual você só precisa solfejar a melodia com um lá-lá-lá (até desentoado) para que apareçam os links/arquivos onde essa possível música pode ser encontrada. Um avanço e tanto. Eu me sinto privilegiado por ainda estar vivo e testemunhar esses feitos. Mas ainda aguardo que os programas de Inteligência Artificial componham uma música que preste. :)



terça-feira, 13 de setembro de 2022

ALMOÇO DE FATO


Lá nos remotos anos 60, na ainda mais remota Nazareth City ou Nazaré das Farinhas ou apenas Nazaré (para os nativos como eu e para a Geografia), os domingos me apresentavam de quando em vez o temível "almoço de fato" (ou fatada)  - preparação culinária desenvolvida (suponho) para competir com o gás mostarda na I Guerra Mundial visando ao extermínio de exércitos inteiros na primeira garfada ou nas poucas subsequentes.

A composição dessa temerária comida se constitui primordialmente de porções de todos os órgãos e tecidos presentes na cavidade abdominal bovina, incluindo aquelas esquisitices estomacais do ruminante que comportam até algo chamado “livro”, mais umas carnezinhas.  Tudo isso e mais temperos e condimentos diversos iam para a panela a fim de gerar um odor nauseabundo de vômito e golfadas em conserva, que circulava por toda a casa e, imagino, pelas redondezas, impregnando a mucosa olfatória de maneira tão persistente que se ameaçava perene. Ao fim do cozimento, as porções sólidas da coisa eram segregadas; com o que ficava na panela estava gerado um aterrorizante caldo, que devia conter toda a gordura prevista para um ser humano ingerir durante sua completa existência. A esse caldo era adicionada generosa e gradativa quantidade de farinha de mandioca para gerar o imprescindível pirão, o qual já trazia em si a fórmula dos adesivos mais potentes, pois ia se recusando firmemente a se desprender da colher de pau, exigindo determinação e autoridade de quem cozinhava para fazer sua remoção entre recipientes quando atingia o ponto de preparo ou ponto gatilho.

A gororoba pastosa era colocada sobre a mesa, ao lado (ou mesmo distante) das partes sólidas ou quase isso. Uns salivavam enquanto outros se benziam ou se persignavam (meu caso). Havia quem colocasse molho (de pimenta) no pirão para aumentar seu efeito devastador. A ingestão era acompanhada da sensação de deglutição incompleta, pois o pirão (não surpreendentemente) insistia em ficar grudado no palato. Os fatos propriamente ditos iam sendo, na medida do possível, mastigados e lançados diretamente da boca ao piloro, para indicar a trajetória e o sentido a ser seguido.

O meu temor e repugnância pela iguaria eram reforçados pelas histórias, contadas bem nessa hora do almoço, dos infelizes destinos de comensais que, após o consumo desse prato, experimentaram imediata indigestão,  congestão, derrames, paralisias, catatonias, estupores, só por se terem envolvido pós-prandialmente em atividade muscular outra que não apenas os movimentos respiratórios (cautelosos).

Não deve ser por outra razão, meus caros, que desenvolvi aversão ao domínio do fato.


24/05/2016