terça-feira, 13 de setembro de 2022

ALMOÇO DE FATO


Lá nos remotos anos 60, na ainda mais remota Nazareth City ou Nazaré das Farinhas ou apenas Nazaré (para os nativos como eu e para a Geografia), os domingos me apresentavam de quando em vez o temível "almoço de fato" (ou fatada)  - preparação culinária desenvolvida (suponho) para competir com o gás mostarda na I Guerra Mundial visando ao extermínio de exércitos inteiros na primeira garfada ou nas poucas subsequentes.

A composição dessa temerária comida se constitui primordialmente de porções de todos os órgãos e tecidos presentes na cavidade abdominal bovina, incluindo aquelas esquisitices estomacais do ruminante que comportam até algo chamado “livro”, mais umas carnezinhas.  Tudo isso e mais temperos e condimentos diversos iam para a panela a fim de gerar um odor nauseabundo de vômito e golfadas em conserva, que circulava por toda a casa e, imagino, pelas redondezas, impregnando a mucosa olfatória de maneira tão persistente que se ameaçava perene. Ao fim do cozimento, as porções sólidas da coisa eram segregadas; com o que ficava na panela estava gerado um aterrorizante caldo, que devia conter toda a gordura prevista para um ser humano ingerir durante sua completa existência. A esse caldo era adicionada generosa e gradativa quantidade de farinha de mandioca para gerar o imprescindível pirão, o qual já trazia em si a fórmula dos adesivos mais potentes, pois ia se recusando firmemente a se desprender da colher de pau, exigindo determinação e autoridade de quem cozinhava para fazer sua remoção entre recipientes quando atingia o ponto de preparo ou ponto gatilho.

A gororoba pastosa era colocada sobre a mesa, ao lado (ou mesmo distante) das partes sólidas ou quase isso. Uns salivavam enquanto outros se benziam ou se persignavam (meu caso). Havia quem colocasse molho (de pimenta) no pirão para aumentar seu efeito devastador. A ingestão era acompanhada da sensação de deglutição incompleta, pois o pirão (não surpreendentemente) insistia em ficar grudado no palato. Os fatos propriamente ditos iam sendo, na medida do possível, mastigados e lançados diretamente da boca ao piloro, para indicar a trajetória e o sentido a ser seguido.

O meu temor e repugnância pela iguaria eram reforçados pelas histórias, contadas bem nessa hora do almoço, dos infelizes destinos de comensais que, após o consumo desse prato, experimentaram imediata indigestão,  congestão, derrames, paralisias, catatonias, estupores, só por se terem envolvido pós-prandialmente em atividade muscular outra que não apenas os movimentos respiratórios (cautelosos).

Não deve ser por outra razão, meus caros, que desenvolvi aversão ao domínio do fato.


24/05/2016