Lembrei de uma
experiência de viagem que ocorreu comigo na Espanha. Foi uma vivência relativamente
tensa e exasperante, mas, aos olhos de hoje, pode até ser considerada divertida
para quem dela toma conhecimento com esta narrativa - e mesmo para mim, que a
protagonizei com o coestrelato de minha mulher.
Era início de 2004. Estávamos
num tour entre Espanha e Portugal. No hotel de Lisboa, o guia espanhol pediu um
passaporte de cada membro de casal para o check-in
e os entregou posteriormente à recepção. Eu esperava que depois ele me devolvesse o documento,
mas parece que fui o único a pensar assim. Todos os outros viajantes passaram
depois na recepção e pegaram seus respectivos passaportes e eu fiquei na espera
de que o guia o fizesse para mim e mo devolvesse, uma vez que ele era quem havia
tomado o passaporte de minhas mãos. O fato é que quando o ônibus já estava em
movimento para deixar Lisboa, fui até o guia para cobrar o meu documento e ele
me olhou incrédulo e só faltou dizer “Tolinho, você mesmo não foi pegar o seu na
recepção como todos os outros viajantes a bordo?”. Coincidentemente, todos os
outros passageiros falavam espanhol e se comunicavam alegremente com o guia e
dele recebiam orientações e instruções, enquanto nós, os únicos brasileiros,
nos mantínhamos discretos e por vezes alheados por escolha própria, mas
deixávamos de receber algumas informações privilegiadas, embora não tivéssemos qualquer
dificuldade em entender o que quer que fosse dito por eles (a recíproca talvez
não fosse verdadeira).
Estávamos ainda perto
do hotel, mas o guia não se deu ao trabalho de retornar. Seguimos viagem,
pegamos a estrada, ele telefonou para a recepção e me disse que eles iriam
enviar meu passaporte para a unidade da mesma rede hoteleira em que nos
hospedaríamos no nosso destino seguinte, que era o Porto. Acertou quem deduziu
que os prestativos portugueses não fizeram o envio. Disseram não ter achado
portador, por ser domingo, e mandaram um fax com cópias das páginas do
passaporte contendo a numeração e dados de identificação, coisas que o guia me
assegurou ser suficientes caso eu fosse requisitado pelas autoridades locais a
apresentar meu passaporte. O hotel ficou então de remeter o meu passaporte para
a sede da operadora de turismo, em Madri, cuja chegada deveria se dar no dia
seguinte ou dois dias depois, na pior das hipóteses, e eu iria recebê-lo em
mãos dali a cinco dias, quando o tour retornasse a essa cidade.
Confesso que não eram notícias
tranquilizadoras, mas eu não tinha muito a fazer, a não ser torcer para não ser
detido por uma autoridade qualquer por não portar meu passaporte, além de
cobrar do guia, periodicamente, notícias sobre a chegada da remessa lusa de um
passaporte tupiniquim para a capital da monarquia espanhola.
Depois de percorrer a
Galícia, Leon, as Astúrias e a Cantábria, ao incessante som do Coldplay
cantando Yellow – que era o único CD que o guia possuía a bordo -, finalmente
retornamos a Madri. Fui avidamente resgatar meu passaporte que devia estar de
posse do pessoal da operadora, mas disseram-me displicentemente que não havia
chegado de Portugal. Meu voo de regresso
ao Brasil era no dia seguinte. Um furor uterino, se eu tivesse sido dotado com
esse órgão, se apossou de mim. Minha mulher já vinha até reclamando da minha
calma e passividade diante da situação, desde a saída de Lisboa. Desfilei uma
série de impropérios multilíngues, acusações à competência histórica de todos
os povos da Península Ibérica e adjacências, ataques enviesados e diretos ao
guia, enfim: promovi um espetáculo de baixaria digno da indignidade que me
estava vitimando.
Naquele fim de tarde
não era mais possível tomar nenhuma providência, além de procurar o endereço do
consulado brasileiro. Logo cedo pela manhã fomos até lá – ficava até perto de
onde estávamos hospedados eu e minha mulher. Lá nos deparamos com a informação
de que o horário de funcionamento era das 11:00h às 13:30h. Havia uma pequena
fila formada na escada que dava para a porta da sala do consulado. Quando fui
atendido, a gentil senhora atendente me fez saber que eu teria que dar queixa
na polícia de furto do meu passaporte, trazer o registro da mesma e 2 retratos
5x7 (lembram?). Fui na delegacia mais próxima e fiz essa declaração falsa de
que o passaporte houvera sido furtado. Depois fui procurar onde tirar as fotos
nesse tamanho não usual que era usada nos nossos passaportes. Informaram-me que
havia um estúdio fotográfico num local lá no centro de Madri que fazia tais
fotos. Por curiosidade, olhei a minha carteira e descobri 2 fotos 5x7 de datas
diferentes, sobressalentes de obtenção do atual e de passaporte anterior.
Voltei ao consulado esbaforido. Já eram quase 13:00h. Quando fui atendido, a
gentil senhora pegou o registro da queixa, olhou contrafeita para as minhas fotos
e pediu meu documento de RG! Eu lhe perguntei o que me aconteceria se esse
documento também tivesse sido furtado? Ela não me deu resposta. Entreguei-lhe
minha carteira de médico. Ela aceitou e aí veio a cereja do bolo: pediu
comprovantes de voto das últimas eleições!!! Sabem o que aconteceu? Eu tinha!
Sabe aqueles papeizinhos que lhe entregavam na sessão eleitoral após o ato de
votar? Estavam armazenados num compartimento da minha carteira, desde a eleição
de Prudente de Morais!! Haha! Não me recordo a cara que a gentil espanhola fez
ao me ver brandindo esses improváveis comprovantes.
Aí ela levou a papelada
pro Cônsul e voltou com uma autorização de regresso ao Brasil, com uma das
minhas fotos coladas no documento.
Aliviados, retornamos
ao apart hotel em que estávamos hospedados. Na recepção se encontrava um
envelope com o meu passaporte... É mole?
Ah, e não usei o tal
documento do consulado. Passei no controle de passaportes com meu documento
original (mesmo já tendo sido informado à polícia que ele havia sido furtado e,
no mínimo, deveria estar numa lista suspeita). Que eficiência questionável
desse sistema...
Para finalizar essa
aventura, a Varig estava com overbooking. Ofereciam mundos e fundos para quem
desistisse da viagem naquele voo e adiasse para o dia seguinte. Eu e minha
mulher fomos chamados ao balcão. Pediram os nossos cartões de embarque (que
eram da Classe Econômica) e uma mulher os rasgou, picotou, na nossa cara! Minha
mulher levou as mãos à boca e me olhou atônita. Em seguida nos entregaram 2
outros cartões de embarque com assentos na Classe Executiva. Acho que, depois
de tudo, fizemos jus!