sábado, 9 de março de 2024

Sobre um deus e fé

 

Eu levei um tempo da minha vida fazendo cherry-picking (escolha seletiva) em relação a possíveis evidências da existência do Deus bíblico.

Depois fui colher as frutas podres lá nas Escrituras e me permiti ver que todo o conjunto, de cabo a rabo, era obra humana, apenas humana, gritantemente humana, cheia de desumanidades. E parte considerável era mítica, fabular, adaptações de mitos de outros povos, repletas de pensamento mágico, de absurdos antinaturais.

A seguir abdiquei também da ideia de um deus criador, porque teria que imputar a ele (esse argumento não é originalmente meu) o osteossarcoma (câncer ósseo infantil), para citar uma neoplasia, dolorosa,  que acomete crianças. Sem contar os inúmeros vírus e outros microrganismos que se abatem sobre crianças e lhes causam imensos sofrimentos e sequelas (paralisia infantil, por exemplo). Face a tais exemplos ilustrativos, entre muitos outros, concluí que não podia levar adiante um sistema de crença em um ser superior criador com tal nível de canalhice. Convenhamos que ser superior canalha é uma contradição de termos, um oxímoro. A ideia do deus criador também traz a questão da necessidade de haver uma anterioridade e causalidade desse criador, ou seja, um criador do criador e toda essa sequência retrógrada teria que ter uma complexidade crescente. Explicando: um ser que cria, num estalar de dedos ou num plano meticulosamente arquitetado, o Universo (com maiúscula), este que é o único que conhecemos por enquanto, tem que ser necessariamente mais complexo que a sua criação e tem que ter sido criado por outra "entidade" criadora ainda mais complexa. Mas aí, os defensores do criacionismo lhe jogam na cara o argumento de esse deus - por que não deuses? Por que não o politeísmo (uma divisão de tarefas)?) - SEMPRE existiu! Ora, isso não é argumento sério: é um Deus ex machina! Não há como argumentar num campo onde impera o pensamento mágico - aí qualquer disparate se torna factível. Tem também as contradições do deus perfeito (que já num estado de perfeição sente a necessidade de criar um mundo para se divertir?);  tem o deus onipotente, onisciente, onipresente, onibenevolente, e todos os "omni" imagináveis, que ora tudo controla, ora dá o livre arbítrio, ora perdoa, ora pune, ora cuida, ora não está nem aí.

Então ficamos assim: eu não acredito (não tenho fé) na existência de um ou mais de deuses - ateísmo; eu não tenho como provar cientificamente que não existe ou que existe um deus ou deuses - agnosticismo. E me sinto confortável e bem melhor sem deuses, sem alma, sem céu ou inferno, sem vida eterna, sem divino, sem destino. O sentido da minha vida é o caminho que eu decidir tomar. Saber objetivamente que o que tenho à disposição, na trajetória do universo até o seu colapso, se apresenta sob a forma da minha existência e atos nesse período de tempo entre meu nascimento e morte (e nada mais), faz a vida se tornar bem mais preciosa. Tudo se passará aqui nesse palco. Não tenho que remeter nada a planos imaginários post mortem. Ficarão aí, quando eu morrer, meus genes diluídos na minha descendência, meus escritos, árvores que plantei, outros tênues registros e referências... Depois de algum tempo já não serão mais vistos ou evocados. E terá sido isso. Nenhum propósito especial. Nenhuma missão. Nada além de um elo nas correntes da vida. Correntes que se estendem e se ramificam aleatoriamente sem rumo e sem nenhuma pretensão além de apenas ser e ser e ser e fim.

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O pior, o mais patológico das religiões organizadas é endeusar a fé, instigar e elogiar o crer sem prova, aceitar como verdadeiro algo para o qual não há evidências,  sob o argumento da autoridade de religiosos. Significa abolir o raciocínio, o pensamento crítico, não fazer uso das ferramentas que nossa espécie desenvolveu evolutivamente, porque isso coloca em risco o poder do pajé e a credibilidade da pajelança. A fé é a aceitação acrítica do pensamento mágico (definido aqui como a crença que orações alteram a realidade, que é possível  a existência de milagres causando a ruptura impune de leis da Natureza, etc) e a inclinação cognitiva para o pensamento ilusório (wishful thinking) - querer, desejar ou precisar que algo seja verdade para ter conforto existencial. 

As religiões tratam espertamente de se blindar quando censuram e praticamente criminalizam a situação de ter seus dogmas ameaçados por uma fé cambaleante ou pela falta de fé. Além disso, criam outros “crimes” capitais como a blasfêmia, heresia, etc, que se tornam alvo de punições sociais imediatas (anátemas, excomunhões, opróbios) ou maldições que deverão se cumprir num pós-vida, nesse caso lançando mão da necessária invenção de demônios e inferno.

A fé é uma disposição mental escandalosa. O seu estímulo deveria ser denunciado como assédio intelectual, como insulto, e sua adoção deveria ser desencorajada e abolida nas futuras gerações desde a mais tenra infância.

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Ter fé é crer em algo sem provas, acreditar sem ter evidências, tomar como certa qualquer coisa só por intuição ou porque a autoridade atribuída a alguma pessoa ou a um livro lhe diz ser essa a verdade. A fé afronta a razão e é justamente no abandono da razão, no desprezo da capacidade crítica inerente aos seres racionais, na louvação ao não questionamento, que as religiões lançam suas bases, se estabelecem, vicejam e nos escravizam.  Ter fé não deve ser visto como virtude. Muito pelo contrário. Como se pode elogiar um comportamento que prescinde da racionalidade?

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Nenhuma intensidade de convicção ou fé torna algo um fato.

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O nome daquilo capaz de mover montanhas não é fé, é avalanche ou terremoto.

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"Fé é aquilo em que você acredita. Religião é aquilo que os outros dizem pra você acreditar."

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