sexta-feira, 29 de março de 2024

Salvador 475 anos. Eu, 50 anos em Salvador (com várias estadias temporárias anteriores).

 

Navios El Rey, João das Botas, Maragogipe, Itaparica e Espera “jogando” na meia-travessa; a visão progressivamente imponente da cidade, em camadas, vista do mar; chegada no cais da Companhia de Navegação Bahiana (ou só “Bahiana”); maçãs argentinas com muito cheiro e pouco gosto expostas sobre caixotes no Terminal da França; ônibus elétricos (trólebus) da SMTC na cidade baixa; cheiro da fábrica dos chocolates Chadler nos Mares e do Café Cravo no Caminho de Areia; leite Alimba na garrafa marrom entregue nas portas; subir pelo Elevador Lacerda e descer pelo Plano Inclinado; ver os outros tomando sorvete na Cubana (e não ter dinheiro pra tomar também); dar uma volta na escada rolante das Duas Américas; a “Mulher de Roxo”; ficar observando o desempenho coreográfico do Guarda Pelé orientando o trânsito: ver os cartazes dos cinemas Excelsior, Liceu, Astor, Popular, Tamoio, Guarany, Bahia, Capri, Bristol; assistir a um filme fumando na cabine de fumantes do Cine Bahia; comer um hambúrguer do Rose’s; uma banana split das Lojas Brasileiras; uma fatia de torta de tapioca do Savoy; um pastel do chinês da Carlos Gomes; um caldo de cana do meio de uma rua qualquer; passear na Avenida Sete olhando o interior das Lojas Sadel, M Kraychete, Radiolar, Florensilva, Romelsa, Saffilhos, Clark Calçados, A Norma…; ficar ouvindo um som na loja de discos da Fundação Politécnica e olhando o desfile das cocotas; um cachorro-quente no trailer do Tony’s ou no Baitakão; a esfiha de rosbife da Unimar da Fonte Nova; a ficha pros orelhões da Tebasa; entrar bem antes do xaréu da Fonte Nova abrir, pelo portão das numeradas superiores e cadeiras cativas, na ladeira, que ficava encostado e a dois passos do meu pensionato na Joana Angélica; ficar na janela do pensionato cerrando cigarros dos passantes até completar uma carteira; entrar de penetra no Baile de Iemanjá, no Clube Português;  também penetrar no Grito de Carnaval do Fantoches da Euterpe e ainda dar espeto no bar; dar espeto também no Braseiro da Carlos Gomes, no Tatu Paka da Pituba, no Jereré de Amaralina; subir a Ladeira da Barra de “morcego” num ônibus da Vibemsa; ir num “xinxim de bofe dançante” no Bairro Macaúbas; fazer serenata na Lagoa do Abaeté bebendo cambuí; bater um baba no SESC de Piatã e depois comer uma dobradinha barata no restaurante do SENAC dentro do próprio clube; ir pra missa das 18:00h, dos domingos, na Igreja de Santana ou no Mosteiro de São Bento, só pra ver uma renca de menina bonita; dar uns amassos na praia atrás do Língua de Prata, em Itapuã; dançar no Pá da Baleia e não conseguir pegar ninguém; passar várias vezes na porta da Boite Anjo Azul e nunca entrar por não ter dinheiro; tomar uma batida de pitanga em Diolino, no Rio Vermelho, e um caldo de sururu no Popular Batidas, na Pituba; ir pra faculdade andando pra economizar dinheiro pro lanche na cantina e pro ingresso do cinema; ir para um sambão na Barraca de Juvená; tomar uma cerveja no Peji, do Orixás Center ou farrear no Avalanches, do Canela; tomar incontáveis chopes no Oceania, no Farol, quando os colegas pagavam minha parte, acumulando uma pilha de "bolachas"; comer uma pizza depois de vários chopes na Dom Giovanni do terraço do Shopping Iguatemi recém-inaugurado; pegar um galeto assado do abatedouro na esquina do Areal de Baixo, no Largo 2 de Julho, levar pro pensionato e comer tomando uma Brahma gelada; comer uma vara de pão de sal de semolina quentinha com manteiga derretendo e arrematar com uma garrafa de Guaraná Antárctica, em qualquer padaria das imediações do pensionato em que eu estivesse morando na Joana Angélica, no Lanat ou no Largo 2 de Julho; dar plantão como interno no atendimento de emergência no Pronto Socorro do HGV, no Canela, sonhando em ter um rápido tempo livre para atravessar a rua e fazer um lanche no Paes Mendonça defronte; namorar bastante no Largo 2 de Julho, noivar, casar na Igreja dos Aflitos, ter filhos paridos no IPERBA, preparados no ensino pelo Social e formados pela UFBA, netos paridos no Hospital Santo Amaro e Mater Dei, viajar muito e voltar sempre pra esta cidade, que não é mais a mesma, mas é quase igual.

sábado, 9 de março de 2024

Sobre um deus e fé

 

Eu levei um tempo da minha vida fazendo cherry-picking (escolha seletiva) em relação a possíveis evidências da existência do Deus bíblico.

Depois fui colher as frutas podres lá nas Escrituras e me permiti ver que todo o conjunto, de cabo a rabo, era obra humana, apenas humana, gritantemente humana, cheia de desumanidades. E parte considerável era mítica, fabular, adaptações de mitos de outros povos, repletas de pensamento mágico, de absurdos antinaturais.

A seguir abdiquei também da ideia de um deus criador, porque teria que imputar a ele (esse argumento não é originalmente meu) o osteossarcoma (câncer ósseo infantil), para citar uma neoplasia, dolorosa,  que acomete crianças. Sem contar os inúmeros vírus e outros microrganismos que se abatem sobre crianças e lhes causam imensos sofrimentos e sequelas (paralisia infantil, por exemplo). Face a tais exemplos ilustrativos, entre muitos outros, concluí que não podia levar adiante um sistema de crença em um ser superior criador com tal nível de canalhice. Convenhamos que ser superior canalha é uma contradição de termos, um oxímoro. A ideia do deus criador também traz a questão da necessidade de haver uma anterioridade e causalidade desse criador, ou seja, um criador do criador e toda essa sequência retrógrada teria que ter uma complexidade crescente. Explicando: um ser que cria, num estalar de dedos ou num plano meticulosamente arquitetado, o Universo (com maiúscula), este que é o único que conhecemos por enquanto, tem que ser necessariamente mais complexo que a sua criação e tem que ter sido criado por outra "entidade" criadora ainda mais complexa. Mas aí, os defensores do criacionismo lhe jogam na cara o argumento de esse deus - por que não deuses? Por que não o politeísmo (uma divisão de tarefas)?) - SEMPRE existiu! Ora, isso não é argumento sério: é um Deus ex machina! Não há como argumentar num campo onde impera o pensamento mágico - aí qualquer disparate se torna factível. Tem também as contradições do deus perfeito (que já num estado de perfeição sente a necessidade de criar um mundo para se divertir?);  tem o deus onipotente, onisciente, onipresente, onibenevolente, e todos os "omni" imagináveis, que ora tudo controla, ora dá o livre arbítrio, ora perdoa, ora pune, ora cuida, ora não está nem aí.

Então ficamos assim: eu não acredito (não tenho fé) na existência de um ou mais de deuses - ateísmo; eu não tenho como provar cientificamente que não existe ou que existe um deus ou deuses - agnosticismo. E me sinto confortável e bem melhor sem deuses, sem alma, sem céu ou inferno, sem vida eterna, sem divino, sem destino. O sentido da minha vida é o caminho que eu decidir tomar. Saber objetivamente que o que tenho à disposição, na trajetória do universo até o seu colapso, se apresenta sob a forma da minha existência e atos nesse período de tempo entre meu nascimento e morte (e nada mais), faz a vida se tornar bem mais preciosa. Tudo se passará aqui nesse palco. Não tenho que remeter nada a planos imaginários post mortem. Ficarão aí, quando eu morrer, meus genes diluídos na minha descendência, meus escritos, árvores que plantei, outros tênues registros e referências... Depois de algum tempo já não serão mais vistos ou evocados. E terá sido isso. Nenhum propósito especial. Nenhuma missão. Nada além de um elo nas correntes da vida. Correntes que se estendem e se ramificam aleatoriamente sem rumo e sem nenhuma pretensão além de apenas ser e ser e ser e fim.

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O pior, o mais patológico das religiões organizadas é endeusar a fé, instigar e elogiar o crer sem prova, aceitar como verdadeiro algo para o qual não há evidências,  sob o argumento da autoridade de religiosos. Significa abolir o raciocínio, o pensamento crítico, não fazer uso das ferramentas que nossa espécie desenvolveu evolutivamente, porque isso coloca em risco o poder do pajé e a credibilidade da pajelança. A fé é a aceitação acrítica do pensamento mágico (definido aqui como a crença que orações alteram a realidade, que é possível  a existência de milagres causando a ruptura impune de leis da Natureza, etc) e a inclinação cognitiva para o pensamento ilusório (wishful thinking) - querer, desejar ou precisar que algo seja verdade para ter conforto existencial. 

As religiões tratam espertamente de se blindar quando censuram e praticamente criminalizam a situação de ter seus dogmas ameaçados por uma fé cambaleante ou pela falta de fé. Além disso, criam outros “crimes” capitais como a blasfêmia, heresia, etc, que se tornam alvo de punições sociais imediatas (anátemas, excomunhões, opróbios) ou maldições que deverão se cumprir num pós-vida, nesse caso lançando mão da necessária invenção de demônios e inferno.

A fé é uma disposição mental escandalosa. O seu estímulo deveria ser denunciado como assédio intelectual, como insulto, e sua adoção deveria ser desencorajada e abolida nas futuras gerações desde a mais tenra infância.

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Ter fé é crer em algo sem provas, acreditar sem ter evidências, tomar como certa qualquer coisa só por intuição ou porque a autoridade atribuída a alguma pessoa ou a um livro lhe diz ser essa a verdade. A fé afronta a razão e é justamente no abandono da razão, no desprezo da capacidade crítica inerente aos seres racionais, na louvação ao não questionamento, que as religiões lançam suas bases, se estabelecem, vicejam e nos escravizam.  Ter fé não deve ser visto como virtude. Muito pelo contrário. Como se pode elogiar um comportamento que prescinde da racionalidade?

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Nenhuma intensidade de convicção ou fé torna algo um fato.

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O nome daquilo capaz de mover montanhas não é fé, é avalanche ou terremoto.

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"Fé é aquilo em que você acredita. Religião é aquilo que os outros dizem pra você acreditar."