quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Frases soltas que cultivo por aqui

Tenho vivido como se minha vida dependesse disso.

Era uma vez em que não havia tempo.

Eu sempre tive pouco tempo para ter muito tempo.

Eu sempre tive muito tempo para ter pouco tempo, para não ter tempo pra nada.

Eu sempre tive muito tempo para nunca ter tempo pra sempre.

Estou muito longe de chegar perto.

Eu sempre soube que não saberia nunca.

Cultivei muitas árvores infrutíferas.

E quando o fado foi lançado 

transpus de lado a lado

o Rubicão a nado.

A Lua está com os olhos tristes...

Pois não é sim, pois sim é não.

O entorno virou uma casa de intolerância.

Corpos ocupando o mesmo espaço no lugar.

Agi em ilegítima defesa.

Saí cantando “Adíos, muchachos” e retornei no dia seguinte assobiando “A volta do boêmio”.

Agora, já no fim de ninha existência, admito que tudo o que aprendi foi extremamente insuficiente e precário.

Seria bom morrer num dia chuvoso, 

mas só depois que a chuva passasse:

para não perder essa última contemplação 

da coisa natural que mais amei durante minha existência.

Dirijo-me a um paradeiro desconhecido, lugar incerto e, portanto, não sabido.

Deixarei com vocês o meu prudente silêncio ignorante.

Minhas últimas palavras não ficarão registradas na caixa preta.

No epitáfio apenas isso - “Viveu.  Quando morreu foi para onde estava antes de nascer: a inexistência.”

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Conselhos realistas

Se seu sonho for muito distante da realidade ou além das suas possibilidades, desista dele e pare de perder tempo com maluquices;

Se você não se acha bom/boa o bastante em algo, provavelmente tem razão. Neste caso, siga seus instintos e saia dessa;

Se você só pensar positivo há uma boa chance de atrair algo negativo (sabe aquele lance da atração dos opostos?). Algum negativismo pode ser saudável: pratique;

Sabe aquela pessoa que parece inacessível e que não lhe dá a menor bola? Pois é: acostume-se com isso. As chances de você se dar bem nessa são ínfimas;

Sabe a loteria? Jogue não!

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terça-feira, 9 de julho de 2024

No popular + Passando pela cabeça

A força da popularização dos termos na linguagem geral:

- o dengue na acepção de doença (termo que é visto no masculino nos livros de medicina) virou a dengue, provavelmente para diferençar do dengo (manha);

- a cólera (a doença) já é quase o cólera (o agente);

- o diabetes (doença), já está sendo chamado de a diabetes ou a diabete (provavelmente a chacrete do diabo);

- e a Olimpíada, que se refere originalmente às competições que eram realizadas na antiguidade em Olímpia, Grécia, a cada 4 anos, passou a se chamar Jogos Olímpicos da Era Moderna e daí para cada Olimpíada ser chamada de Olimpíadas foi um salto (sem vara).

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Nesta Olimpíada (2024), os “criativos” repórteres têm, insistente e repetitivamente, feito a mesma pergunta aos atletas: “O que passou pela sua cabeça…?”

Viraram psicanalistas? Ou padres no confessionário querendo extrair picantes “pecados por pensamento”? 

Meu cérebro literal, entretanto, quando diante dessa pergunta, me remete sempre a coisas materiais que podem ser passadas no couro cabeludo. Assim, tomando por base meu histórico bem remoto, eu poderia responder dessa forma a uma pergunta dessas: “Muitas coisas passaram pela minha cabeça nessa vida - minha mão: xampu Johnson’s; sabonetes Eucalol, Lifebuoy, Gessy, Lux; brilhantina Glostora; Brylcreem, Trim; Neocid…”

Não seria material para embasar um atestado de sanidade mental, mas seria fiel à verdade.


sábado, 1 de junho de 2024

Apuros de turista brasileiro

 


Lembrei de uma experiência de viagem que ocorreu comigo na Espanha. Foi uma vivência relativamente tensa e exasperante, mas, aos olhos de hoje, pode até ser considerada divertida para quem dela toma conhecimento com esta narrativa - e mesmo para mim, que a protagonizei com o coestrelato de minha mulher.

Era início de 2004. Estávamos num tour entre Espanha e Portugal. No hotel de Lisboa, o guia espanhol pediu um passaporte de cada membro de casal para o check-in e os entregou posteriormente à recepção. Eu esperava que depois ele me devolvesse o documento, mas parece que fui o único a pensar assim. Todos os outros viajantes passaram depois na recepção e pegaram seus respectivos passaportes e eu fiquei na espera de que o guia o fizesse para mim e mo devolvesse, uma vez que ele era quem havia tomado o passaporte de minhas mãos. O fato é que quando o ônibus já estava em movimento para deixar Lisboa, fui até o guia para cobrar o meu documento e ele me olhou incrédulo e só faltou dizer “Tolinho, você mesmo não foi pegar o seu na recepção como todos os outros viajantes a bordo?”. Coincidentemente, todos os outros passageiros falavam espanhol e se comunicavam alegremente com o guia e dele recebiam orientações e instruções, enquanto nós, os únicos brasileiros, nos mantínhamos discretos e por vezes alheados por escolha própria, mas deixávamos de receber algumas informações privilegiadas, embora não tivéssemos qualquer dificuldade em entender o que quer que fosse dito por eles (a recíproca talvez não fosse verdadeira).

Estávamos ainda perto do hotel, mas o guia não se deu ao trabalho de retornar. Seguimos viagem, pegamos a estrada, ele telefonou para a recepção e me disse que eles iriam enviar meu passaporte para a unidade da mesma rede hoteleira em que nos hospedaríamos no nosso destino seguinte, que era o Porto. Acertou quem deduziu que os prestativos portugueses não fizeram o envio. Disseram não ter achado portador, por ser domingo, e mandaram um fax com cópias das páginas do passaporte contendo a numeração e dados de identificação, coisas que o guia me assegurou ser suficientes caso eu fosse requisitado pelas autoridades locais a apresentar meu passaporte. O hotel ficou então de remeter o meu passaporte para a sede da operadora de turismo, em Madri, cuja chegada deveria se dar no dia seguinte ou dois dias depois, na pior das hipóteses, e eu iria recebê-lo em mãos dali a cinco dias, quando o tour retornasse a essa cidade.

Confesso que não eram notícias tranquilizadoras, mas eu não tinha muito a fazer, a não ser torcer para não ser detido por uma autoridade qualquer por não portar meu passaporte, além de cobrar do guia, periodicamente, notícias sobre a chegada da remessa lusa de um passaporte tupiniquim para a capital da monarquia espanhola.

Depois de percorrer a Galícia, Leon, as Astúrias e a Cantábria, ao incessante som do Coldplay cantando Yellow – que era o único CD que o guia possuía a bordo -, finalmente retornamos a Madri. Fui avidamente resgatar meu passaporte que devia estar de posse do pessoal da operadora, mas disseram-me displicentemente que não havia chegado de Portugal.  Meu voo de regresso ao Brasil era no dia seguinte. Um furor uterino, se eu tivesse sido dotado com esse órgão, se apossou de mim. Minha mulher já vinha até reclamando da minha calma e passividade diante da situação, desde a saída de Lisboa. Desfilei uma série de impropérios multilíngues, acusações à competência histórica de todos os povos da Península Ibérica e adjacências, ataques enviesados e diretos ao guia, enfim: promovi um espetáculo de baixaria digno da indignidade que me estava vitimando.

Naquele fim de tarde não era mais possível tomar nenhuma providência, além de procurar o endereço do consulado brasileiro. Logo cedo pela manhã fomos até lá – ficava até perto de onde estávamos hospedados eu e minha mulher. Lá nos deparamos com a informação de que o horário de funcionamento era das 11:00h às 13:30h. Havia uma pequena fila formada na escada que dava para a porta da sala do consulado. Quando fui atendido, a gentil senhora atendente me fez saber que eu teria que dar queixa na polícia de furto do meu passaporte, trazer o registro da mesma e 2 retratos 5x7 (lembram?). Fui na delegacia mais próxima e fiz essa declaração falsa de que o passaporte houvera sido furtado. Depois fui procurar onde tirar as fotos nesse tamanho não usual que era usada nos nossos passaportes. Informaram-me que havia um estúdio fotográfico num local lá no centro de Madri que fazia tais fotos. Por curiosidade, olhei a minha carteira e descobri 2 fotos 5x7 de datas diferentes, sobressalentes de obtenção do atual e de passaporte anterior. Voltei ao consulado esbaforido. Já eram quase 13:00h. Quando fui atendido, a gentil senhora pegou o registro da queixa, olhou contrafeita para as minhas fotos e pediu meu documento de RG! Eu lhe perguntei o que me aconteceria se esse documento também tivesse sido furtado? Ela não me deu resposta. Entreguei-lhe minha carteira de médico. Ela aceitou e aí veio a cereja do bolo: pediu comprovantes de voto das últimas eleições!!! Sabem o que aconteceu? Eu tinha! Sabe aqueles papeizinhos que lhe entregavam na sessão eleitoral após o ato de votar? Estavam armazenados num compartimento da minha carteira, desde a eleição de Prudente de Morais!! Haha! Não me recordo a cara que a gentil espanhola fez ao me ver brandindo esses improváveis comprovantes.

Aí ela levou a papelada pro Cônsul e voltou com uma autorização de regresso ao Brasil, com uma das minhas fotos coladas no documento.

Aliviados, retornamos ao apart hotel em que estávamos hospedados. Na recepção se encontrava um envelope com o meu passaporte... É mole?

Ah, e não usei o tal documento do consulado. Passei no controle de passaportes com meu documento original (mesmo já tendo sido informado à polícia que ele havia sido furtado e, no mínimo, deveria estar numa lista suspeita). Que eficiência questionável desse sistema...

Para finalizar essa aventura, a Varig estava com overbooking. Ofereciam mundos e fundos para quem desistisse da viagem naquele voo e adiasse para o dia seguinte. Eu e minha mulher fomos chamados ao balcão. Pediram os nossos cartões de embarque (que eram da Classe Econômica) e uma mulher os rasgou, picotou, na nossa cara! Minha mulher levou as mãos à boca e me olhou atônita. Em seguida nos entregaram 2 outros cartões de embarque com assentos na Classe Executiva. Acho que, depois de tudo, fizemos jus!

sexta-feira, 29 de março de 2024

Salvador 475 anos. Eu, 50 anos em Salvador (com várias estadias temporárias anteriores).

 

Navios El Rey, João das Botas, Maragogipe, Itaparica e Espera “jogando” na meia-travessa; a visão progressivamente imponente da cidade, em camadas, vista do mar; chegada no cais da Companhia de Navegação Bahiana (ou só “Bahiana”); maçãs argentinas com muito cheiro e pouco gosto expostas sobre caixotes no Terminal da França; ônibus elétricos (trólebus) da SMTC na cidade baixa; cheiro da fábrica dos chocolates Chadler nos Mares e do Café Cravo no Caminho de Areia; leite Alimba na garrafa marrom entregue nas portas; subir pelo Elevador Lacerda e descer pelo Plano Inclinado; ver os outros tomando sorvete na Cubana (e não ter dinheiro pra tomar também); dar uma volta na escada rolante das Duas Américas; a “Mulher de Roxo”; ficar observando o desempenho coreográfico do Guarda Pelé orientando o trânsito: ver os cartazes dos cinemas Excelsior, Liceu, Astor, Popular, Tamoio, Guarany, Bahia, Capri, Bristol; assistir a um filme fumando na cabine de fumantes do Cine Bahia; comer um hambúrguer do Rose’s; uma banana split das Lojas Brasileiras; uma fatia de torta de tapioca do Savoy; um pastel do chinês da Carlos Gomes; um caldo de cana do meio de uma rua qualquer; passear na Avenida Sete olhando o interior das Lojas Sadel, M Kraychete, Radiolar, Florensilva, Romelsa, Saffilhos, Clark Calçados, A Norma…; ficar ouvindo um som na loja de discos da Fundação Politécnica e olhando o desfile das cocotas; um cachorro-quente no trailer do Tony’s ou no Baitakão; a esfiha de rosbife da Unimar da Fonte Nova; a ficha pros orelhões da Tebasa; entrar bem antes do xaréu da Fonte Nova abrir, pelo portão das numeradas superiores e cadeiras cativas, na ladeira, que ficava encostado e a dois passos do meu pensionato na Joana Angélica; ficar na janela do pensionato cerrando cigarros dos passantes até completar uma carteira; entrar de penetra no Baile de Iemanjá, no Clube Português;  também penetrar no Grito de Carnaval do Fantoches da Euterpe e ainda dar espeto no bar; dar espeto também no Braseiro da Carlos Gomes, no Tatu Paka da Pituba, no Jereré de Amaralina; subir a Ladeira da Barra de “morcego” num ônibus da Vibemsa; ir num “xinxim de bofe dançante” no Bairro Macaúbas; fazer serenata na Lagoa do Abaeté bebendo cambuí; bater um baba no SESC de Piatã e depois comer uma dobradinha barata no restaurante do SENAC dentro do próprio clube; ir pra missa das 18:00h, dos domingos, na Igreja de Santana ou no Mosteiro de São Bento, só pra ver uma renca de menina bonita; dar uns amassos na praia atrás do Língua de Prata, em Itapuã; dançar no Pá da Baleia e não conseguir pegar ninguém; passar várias vezes na porta da Boite Anjo Azul e nunca entrar por não ter dinheiro; tomar uma batida de pitanga em Diolino, no Rio Vermelho, e um caldo de sururu no Popular Batidas, na Pituba; ir pra faculdade andando pra economizar dinheiro pro lanche na cantina e pro ingresso do cinema; ir para um sambão na Barraca de Juvená; tomar uma cerveja no Peji, do Orixás Center ou farrear no Avalanches, do Canela; tomar incontáveis chopes no Oceania, no Farol, quando os colegas pagavam minha parte, acumulando uma pilha de "bolachas"; comer uma pizza depois de vários chopes na Dom Giovanni do terraço do Shopping Iguatemi recém-inaugurado; pegar um galeto assado do abatedouro na esquina do Areal de Baixo, no Largo 2 de Julho, levar pro pensionato e comer tomando uma Brahma gelada; comer uma vara de pão de sal de semolina quentinha com manteiga derretendo e arrematar com uma garrafa de Guaraná Antárctica, em qualquer padaria das imediações do pensionato em que eu estivesse morando na Joana Angélica, no Lanat ou no Largo 2 de Julho; dar plantão como interno no atendimento de emergência no Pronto Socorro do HGV, no Canela, sonhando em ter um rápido tempo livre para atravessar a rua e fazer um lanche no Paes Mendonça defronte; namorar bastante no Largo 2 de Julho, noivar, casar na Igreja dos Aflitos, ter filhos paridos no IPERBA, preparados no ensino pelo Social e formados pela UFBA, netos paridos no Hospital Santo Amaro e Mater Dei, viajar muito e voltar sempre pra esta cidade, que não é mais a mesma, mas é quase igual.

sábado, 9 de março de 2024

Sobre um deus e fé

 

Eu levei um tempo da minha vida fazendo cherry-picking (escolha seletiva) em relação a possíveis evidências da existência do Deus bíblico.

Depois fui colher as frutas podres lá nas Escrituras e me permiti ver que todo o conjunto, de cabo a rabo, era obra humana, apenas humana, gritantemente humana, cheia de desumanidades. E parte considerável era mítica, fabular, adaptações de mitos de outros povos, repletas de pensamento mágico, de absurdos antinaturais.

A seguir abdiquei também da ideia de um deus criador, porque teria que imputar a ele (esse argumento não é originalmente meu) o osteossarcoma (câncer ósseo infantil), para citar uma neoplasia, dolorosa,  que acomete crianças. Sem contar os inúmeros vírus e outros microrganismos que se abatem sobre crianças e lhes causam imensos sofrimentos e sequelas (paralisia infantil, por exemplo). Face a tais exemplos ilustrativos, entre muitos outros, concluí que não podia levar adiante um sistema de crença em um ser superior criador com tal nível de canalhice. Convenhamos que ser superior canalha é uma contradição de termos, um oxímoro. A ideia do deus criador também traz a questão da necessidade de haver uma anterioridade e causalidade desse criador, ou seja, um criador do criador e toda essa sequência retrógrada teria que ter uma complexidade crescente. Explicando: um ser que cria, num estalar de dedos ou num plano meticulosamente arquitetado, o Universo (com maiúscula), este que é o único que conhecemos por enquanto, tem que ser necessariamente mais complexo que a sua criação e tem que ter sido criado por outra "entidade" criadora ainda mais complexa. Mas aí, os defensores do criacionismo lhe jogam na cara o argumento de esse deus - por que não deuses? Por que não o politeísmo (uma divisão de tarefas)?) - SEMPRE existiu! Ora, isso não é argumento sério: é um Deus ex machina! Não há como argumentar num campo onde impera o pensamento mágico - aí qualquer disparate se torna factível. Tem também as contradições do deus perfeito (que já num estado de perfeição sente a necessidade de criar um mundo para se divertir?);  tem o deus onipotente, onisciente, onipresente, onibenevolente, e todos os "omni" imagináveis, que ora tudo controla, ora dá o livre arbítrio, ora perdoa, ora pune, ora cuida, ora não está nem aí.

Então ficamos assim: eu não acredito (não tenho fé) na existência de um ou mais de deuses - ateísmo; eu não tenho como provar cientificamente que não existe ou que existe um deus ou deuses - agnosticismo. E me sinto confortável e bem melhor sem deuses, sem alma, sem céu ou inferno, sem vida eterna, sem divino, sem destino. O sentido da minha vida é o caminho que eu decidir tomar. Saber objetivamente que o que tenho à disposição, na trajetória do universo até o seu colapso, se apresenta sob a forma da minha existência e atos nesse período de tempo entre meu nascimento e morte (e nada mais), faz a vida se tornar bem mais preciosa. Tudo se passará aqui nesse palco. Não tenho que remeter nada a planos imaginários post mortem. Ficarão aí, quando eu morrer, meus genes diluídos na minha descendência, meus escritos, árvores que plantei, outros tênues registros e referências... Depois de algum tempo já não serão mais vistos ou evocados. E terá sido isso. Nenhum propósito especial. Nenhuma missão. Nada além de um elo nas correntes da vida. Correntes que se estendem e se ramificam aleatoriamente sem rumo e sem nenhuma pretensão além de apenas ser e ser e ser e fim.

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O pior, o mais patológico das religiões organizadas é endeusar a fé, instigar e elogiar o crer sem prova, aceitar como verdadeiro algo para o qual não há evidências,  sob o argumento da autoridade de religiosos. Significa abolir o raciocínio, o pensamento crítico, não fazer uso das ferramentas que nossa espécie desenvolveu evolutivamente, porque isso coloca em risco o poder do pajé e a credibilidade da pajelança. A fé é a aceitação acrítica do pensamento mágico (definido aqui como a crença que orações alteram a realidade, que é possível  a existência de milagres causando a ruptura impune de leis da Natureza, etc) e a inclinação cognitiva para o pensamento ilusório (wishful thinking) - querer, desejar ou precisar que algo seja verdade para ter conforto existencial. 

As religiões tratam espertamente de se blindar quando censuram e praticamente criminalizam a situação de ter seus dogmas ameaçados por uma fé cambaleante ou pela falta de fé. Além disso, criam outros “crimes” capitais como a blasfêmia, heresia, etc, que se tornam alvo de punições sociais imediatas (anátemas, excomunhões, opróbios) ou maldições que deverão se cumprir num pós-vida, nesse caso lançando mão da necessária invenção de demônios e inferno.

A fé é uma disposição mental escandalosa. O seu estímulo deveria ser denunciado como assédio intelectual, como insulto, e sua adoção deveria ser desencorajada e abolida nas futuras gerações desde a mais tenra infância.

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Ter fé é crer em algo sem provas, acreditar sem ter evidências, tomar como certa qualquer coisa só por intuição ou porque a autoridade atribuída a alguma pessoa ou a um livro lhe diz ser essa a verdade. A fé afronta a razão e é justamente no abandono da razão, no desprezo da capacidade crítica inerente aos seres racionais, na louvação ao não questionamento, que as religiões lançam suas bases, se estabelecem, vicejam e nos escravizam.  Ter fé não deve ser visto como virtude. Muito pelo contrário. Como se pode elogiar um comportamento que prescinde da racionalidade?

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Nenhuma intensidade de convicção ou fé torna algo um fato.

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O nome daquilo capaz de mover montanhas não é fé, é avalanche ou terremoto.

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"Fé é aquilo em que você acredita. Religião é aquilo que os outros dizem pra você acreditar."

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Um sósia




Ao longo da vida tenho constatado evidências empíricas de que várias sequências do meu DNA têm sido usadas para reproduzir minhas características físicas, mormente as faciais. Sempre foi muito comum ser apresentado a alguém e ouvir um “você é cara de...”, “menino, você é irmão de ...?” ou mesmo apenas um “você me lembra muito...”

Esse assunto me foi trazido à mente agora depois de ler a matéria da BBC que pode ser encontrada nesse link: https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63600059

Entre as muitas histórias envolvendo sósias ou quase sósias que se passaram comigo, tem um episódio que aconteceu na minha adolescência, relacionado a um cara que diziam ser muito parecido comigo, e que era da mesma cidade do interior em que eu morava. Éramos companheiros de babas e convivíamos com as mesmas turmas. Eu não nos achava assim tão parecidos, mas sempre que eu ia reconhecer uma firma no Tabelionato de Seu Amabérico, ele me perguntava pelo meu pai (no caso, o pai do sósia) e eu tinha que lhe esclarecer que oficialmente meu pai era outro e que ele devia estar me confundindo com Afonso*.

Pois então, durante uma ensolarada manhã de domingo numa micareta, eu estava num bloco de maioria mascarada e suspendi a máscara até o topo da cabeça por uns instantes pra secar o suor do rosto. Depois recoloquei a máscara e continuei ali no meio do bloco. Logo em seguida, uma menina sem máscara me abraçou pela cintura e ficou me acariciando. Eu, agradavelmente surpreso, tratei de retribuir, depois de conferir os atributos físicos da desconhecida beldade e, na primeira oportunidade, saímos do bloco sendo atraídos para um beco onde poderíamos dar uns amassos mais privadamente, ainda que num espaço tão público (ambiente que para adolescentes com o cérebro inundado de hormônios é como estar numa ilha deserta – não se está nem aí para os circunstantes).

Então, num determinado momento, quando já nos encontrávamos adiantados nos procedimentos libidinosos palpatórios, osculatórios e assemelhados, ela me encarou bem e, assustada, exclamou: “Você não é Afonso, não?”.

Revelação: era namorada de Afonso! Vinha de outra cidade.

Ela me pediu mil desculpas! Eu a desculpei mil vezes e a fiz ver que foi um imenso prazer conhecê-la naquelas circunstâncias. Disse-lhe que Afonso era meu amigo (até então) e que eu nunca iria ter a iniciativa de colocá-lo a par daquele nosso momento de inocente mal entendido bem aproveitado, embora interrompido abruptamente. Ela se foi, devolvendo para mim algumas vezes um olhar confuso, até hesitante, eu diria, à medida que se distanciava. Resolvi voltar para o bloco e continuar sem a máscara, não sei se para evitar ou para atrair de volta a aturdida e inominada criatura.

Foi mal aí, Afonso, mas foi muito bom, pelo menos pra mim, ser seu sósia naquele dia!

 

*O nome verdadeiro do meu amigo, obviamente, está sendo omitido/substituído para manutenção da devida discrição que o incidente requer.

domingo, 4 de junho de 2023

Reflexões divinas

 


Resposta a um vídeo de um pastor, no qual ele diz que Deus não existe, ELE É; que Deus não se preocupa se você acredita ou não nele, e que Deus não é matéria de discussão de nenhuma natureza, de constatações, de demonstrações, de palpabilidades; que ele não existe porque não está em lugar nenhum pra ser demonstrado, pra ser provado:

[Vocês podem não acreditar, mas não há um só deus: há inúmeros. E eles não existem: SÃO. Tem deus que regula a gula, tem deus que controla a órbita dos planetas, tem deus especializado em definir e acompanhar o percurso das abelhas, tem deus que traz poemas e canções para alguns eleitos, tem até deus que ajuda o goleiro a defender pênalti. E eles não estão nem aí para o fato de você acreditar ou não neles. Eles não precisam de prova de suas existências porque vivem não existindo, mas sendo por aí indefinidamente sempre, desde sempre, e são imperscrutáveis por nossos limitadíssimos meios.]

É apenas um comentário sarcástico para confrontar a ideia de que se a existência da divindade não pode ser submetida a prova, logo qualquer ideia do que ela supostamente seja pode ser aventada e, consequentemente, validada, já que não pode ser testada nem, portanto, descartada. Então aí cabe o politeísmo, os duendes, quaisquer seres mitológicos, quaisquer ideias estapafúrdias, no papel de geradores e comandantes das sopas de ondas e partículas incertas que compõem esse universozinho de meu deus.

Quod gratis asseritur, gratis negatur (O que é afirmado gratuitamente é negado gratuitamente) ou "What can be asserted without evidence can also be dismissed without evidence" (O que pode ser afirmado sem provas pode ser rejeitado sem provas) - conhecido com "A navalha de Hitchens" ou "Afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias", conhecido como Padrão Sagan.

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Sondando os mistérios

Dúvidas infantis que costumavam me intrigar: a presença de mamas (ou só de mamilos) nos mamíferos machos é para favorecer uma eventual mudança de rumos do portador? E o Criador, que fez o Homem à sua imagem e semelhança, tem mamilos ou não? Tem narinas, pulmões, precisa respirar? Tem unhas? E umbigo? Nunca me satisfiz com aquelas respostas tipo "são mistérios insondáveis", porque na escola nunca me permitiram responder a nenhuma questão de prova com esse tipo de resposta. Também depois de tomar alguns cascudos e puxões de orelha após verbalizar esse tipo de curiosidade, concluí que era melhor guardar essas perguntas só para consumo individual. E com o passar do tempo percebi que só a questão da presença dos mamilos nos mamíferos machos tinha alguma relevância e possibilidade de ser respondida concretamente.

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Capangas da divindade

Um deus todo-poderoso que, sabe-se lá o porquê, não pode aniquilar diretamente seres que ele mesmo teria criado para não crerem nele... Que coisa!

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Blindando sua religião

Não acreditar é pecado; ter dúvidas é pecado; não ter fé é pecado; fraquejar é pecado; questionar é pecado; contestar é pecado; ridicularizar é pecado. Se você criasse uma religião, uma seita, um sistema de crenças, você deixaria a sua clientela livre para discordar, duvidar, contestar, questionar? Ou conferiria autoridade e sacralidade suficientes aos postulados dessa religião para que eles não fossem ameaçados nem tivessem a veracidade posta em dúvida?

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Respondendo às orações

Sabe quando você quer muito alguma coisa, fecha os olhos e pede por uma intervenção divina em seu favor ou de alguém próximo? Pois é: Deus é aquele que não responde às suas preces na grande maioria das vezes. Só que você não atribui isso a ele ou à falta dele. Mas se o que você desejava vier a acontecer, então a conexão divina está configurada, comprovada, etc. lsso pode ser denominado de wishful thinking (pensamento ilusório ou pensamento desejoso), e, portanto, não é verdadeiro.

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Os mistérios do mundo

Você foi ensinado a se satisfazer em não entender o mundo?  Não?  Pense bem, pois é isso que as religiões fazem - elas não estimulam a sua curiosidade. Muito pelo contrário.  Você foi ensinado a achar que há coisas que escapam à nossa compreensão e que essas coisas seriam apenas do domínio de algo superior?  Sim?  Deixe-me adivinhar: foi na sua educação religiosa.  Não aceite postulados que suprimam o uso da sua razão. Os mistérios do mundo estão aí para estimular nossa busca pelo conhecimento. Duvide, questione, pesquise, pense. Você é um Homo sapiens sapiens!

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O perigo da curiosidade

Aos curiosos e cientistas, eis as palavras de "incentivo" de Santo Agostinho pra vocês:  "There is another form of temptation, even more fraught with danger. This is the disease of curiosity. It is this which drives us to try and discover the secrets of nature, those secrets which are beyond our understanding, which can avail us nothing and which man should not wish to learn" (Confessions). Tradução livre: "Existe ainda uma outra forma de tentação, ainda mais repleta de perigo. É a doença da curiosidade. É essa que nos leva a buscar provar e descobrir os segredos da Natureza, segredos, esses, que estão além do nosso entendimento, os quais não podem nos beneficiar em nada e que as pessoas não deviam desejar entender" (Confissões).

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Eu não

Você precisa recorrer ao sobrenatural para levar a vida?

Você vive intimidado por temores a divindades, demônios e pela perspectiva de ser julgado após a morte?

Você acha que a vida é um preâmbulo menor que pode ser perfeitamente desperdiçado? Você acha que vai ter outra chance para reparar eventuais danos a si próprio e aos outros?

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O Tablet da Lei

As Tábuas da Lei com os 10 mandamentos estão defasadas.  Deve vir aí o Tablet da Lei, que só se referirá a fé, temor e dízimo. Furtos, assassinatos, falsos testemunhos, adultérios, castidades, cobiças, convenhamos, são pura letra morta - não pegaram.

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1º mandamento

Adore-me para que eu possa lhe salvar do que eu farei no caso de você não me adorar.

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Visões de mundo (traduzido e parcialmente adaptado de comentários na internet)

Visão de mundo do fundamentalista:

Eu sei que Deus criou o universo inteiro apenas para o benefício dos seres humanos. Ele me vigia constantemente e se preocupa com tudo o que digo e faço. Eu sei como Ele quer que eu e todo o mundo se comporte e creia. Ele é perfeito e justo, e é por isso que enfrentaremos uma eternidade de bem-aventurança ou de tortura, dependendo se acreditamos ou não nEle. 

Visão de mundo do ateu:

Nós somos o produto de milhões de anos de evolução. A maioria das espécies está extinta, assim como os seres humanos acabarão por estar. Espero fazer a diferença de modo positivo em minha existência, porque é a coisa certa a fazer, não por causa de futuras recompensas ou punições numa vida após a morte. Quando eu não sei alguma coisa, eu digo: "Eu não sei."

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Milagres são tragédias precisamente evitadas pelo acaso.

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Estranha mente humana, que tem gerado deuses que se comprazem com adulações e sacrifícios. Estranhos deuses esses que acolhem puxa-sacos torpes e falsos. Deuses que necessitam alimentar-se do aniquilamento de criaturas inocentes ou da abstinência dos prazeres da vida e supressão do pensamento crítico.

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"Basicamente para mim, não há muita saída a não ser aceitar que os humanos, boa parte deles, mesmo quando adultos, seguem com mentes estruturadas (provavelmente por predisposição genética) para interpretar o mundo de uma forma mágica, de modo que não podemos esperar deles racionalismo para interpretar fenômenos da Natureza." (Maria Cátira Bortolini, UFRGS)

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Seria bom que as pessoas tivessem clareza que a blasfêmia é um “crime” contra Deus, portanto só pode ser cometido por quem professa a crença em Deus.

Para um ateu, a blasfêmia é um “crime” sem vítima.

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Blasfêmia é o nome que se dá à difamação de alguns seres que só existem no imaginário.

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 E, no final, o que você vai ser ao morrer é o mesmo que você era antes de nascer.

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Dúvidas infantis que costumavam me intrigar: a presença de mamas (ou só de mamilos) nos mamíferos machos é para favorecer uma eventual mudança de rumos do portador? E o Criador, que fez o Homem à sua imagem e semelhança, tem mamilos ou não? Tem narinas, pulmões, precisa respirar? Tem unhas? E umbigo? Nunca me satisfiz com aquelas respostas tipo "são mistérios insondáveis", porque na escola nunca me permitiram responder a nenhuma questão de prova com esse tipo de argumentação. Claro que só bem mais tarde fui saber que a espécie humana, como todos os mamíferos, têm mamilos porque o desenvolvimento do embrião, antes da definição do sexo, que ocorre mais tarde, segue o mesmo padrão para sexo masculino e feminino, contempla as mesmas estruturas, incluindo a formação dos mamilos. 

Também, depois de tomar alguns cascudos e puxões de orelha após verbalizar esse tipo de curiosidade, concluí que era melhor guardar essas perguntas só para consumo individual. E com o passar do tempo percebi que só a questão da presença dos mamilos nos mamíferos machos tinha alguma relevância e possibilidade de ser respondida concretamente.