quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Frases soltas que cultivo por aqui

Tenho vivido como se minha vida dependesse disso.

Era uma vez em que não havia tempo.

Eu sempre tive pouco tempo para ter muito tempo.

Eu sempre tive muito tempo para ter pouco tempo, para não ter tempo pra nada.

Eu sempre tive muito tempo para nunca ter tempo pra sempre.

Estou muito longe de chegar perto.

Eu sempre soube que não saberia nunca.

Cultivei muitas árvores infrutíferas.

E quando o fado foi lançado 

transpus de lado a lado

o Rubicão a nado.

A Lua está com os olhos tristes...

Pois não é sim, pois sim é não.

O entorno virou uma casa de intolerância.

Corpos ocupando o mesmo espaço no lugar.

Agi em ilegítima defesa.

Saí cantando “Adíos, muchachos” e retornei no dia seguinte assobiando “A volta do boêmio”.

Agora, já no fim de ninha existência, admito que tudo o que aprendi foi extremamente insuficiente e precário.

Seria bom morrer num dia chuvoso, 

mas só depois que a chuva passasse:

para não perder essa última contemplação 

da coisa natural que mais amei durante minha existência.

Dirijo-me a um paradeiro desconhecido, lugar incerto e, portanto, não sabido.

Deixarei com vocês o meu prudente silêncio ignorante.

Minhas últimas palavras não ficarão registradas na caixa preta.

terça-feira, 9 de julho de 2024

No popular + Passando pela cabeça

A força da popularização dos termos na linguagem geral:

- o dengue na acepção de doença (termo que é visto no masculino nos livros de medicina) virou a dengue, provavelmente para diferençar do dengo (manha);

- a cólera (a doença) já é quase o cólera (o agente);

- o diabetes (doença), já está sendo chamado de a diabetes ou a diabete (provavelmente a chacrete do diabo);

- e a Olimpíada, que se refere originalmente às competições que eram realizadas na antiguidade em Olímpia, Grécia, a cada 4 anos, passou a se chamar Jogos Olímpicos da Era Moderna e daí para cada Olimpíada ser chamada de Olimpíadas foi um salto (sem vara).

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Nesta Olimpíada (2024), os “criativos” repórteres têm, insistente e repetitivamente, feito a mesma pergunta aos atletas: “O que passou pela sua cabeça…?”

Viraram psicanalistas? Ou padres no confessionário querendo extrair picantes “pecados por pensamento”? 

Meu cérebro literal, entretanto, quando diante dessa pergunta, me remete sempre a coisas materiais que podem ser passadas no couro cabeludo. Assim, tomando por base meu histórico bem remoto, eu poderia responder dessa forma a uma pergunta dessas: “Muitas coisas passaram pela minha cabeça nessa vida - minha mão: xampu Johnson’s; sabonetes Eucalol, Lifebuoy, Gessy, Lux; brilhantina Glostora; Brylcreem, Trim; Neocid…”

Não seria material para embasar um atestado de sanidade mental, mas seria fiel à verdade.


sábado, 1 de junho de 2024

Apuros de turista brasileiro

 


Lembrei de uma experiência de viagem que ocorreu comigo na Espanha. Foi uma vivência relativamente tensa e exasperante, mas, aos olhos de hoje, pode até ser considerada divertida para quem dela toma conhecimento com esta narrativa - e mesmo para mim, que a protagonizei com o coestrelato de minha mulher.

Era início de 2004. Estávamos num tour entre Espanha e Portugal. No hotel de Lisboa, o guia espanhol pediu um passaporte de cada membro de casal para o check-in e os entregou posteriormente à recepção. Eu esperava que depois ele me devolvesse o documento, mas parece que fui o único a pensar assim. Todos os outros viajantes passaram depois na recepção e pegaram seus respectivos passaportes e eu fiquei na espera de que o guia o fizesse para mim e mo devolvesse, uma vez que ele era quem havia tomado o passaporte de minhas mãos. O fato é que quando o ônibus já estava em movimento para deixar Lisboa, fui até o guia para cobrar o meu documento e ele me olhou incrédulo e só faltou dizer “Tolinho, você mesmo não foi pegar o seu na recepção como todos os outros viajantes a bordo?”. Coincidentemente, todos os outros passageiros falavam espanhol e se comunicavam alegremente com o guia e dele recebiam orientações e instruções, enquanto nós, os únicos brasileiros, nos mantínhamos discretos e por vezes alheados por escolha própria, mas deixávamos de receber algumas informações privilegiadas, embora não tivéssemos qualquer dificuldade em entender o que quer que fosse dito por eles (a recíproca talvez não fosse verdadeira).

Estávamos ainda perto do hotel, mas o guia não se deu ao trabalho de retornar. Seguimos viagem, pegamos a estrada, ele telefonou para a recepção e me disse que eles iriam enviar meu passaporte para a unidade da mesma rede hoteleira em que nos hospedaríamos no nosso destino seguinte, que era o Porto. Acertou quem deduziu que os prestativos portugueses não fizeram o envio. Disseram não ter achado portador, por ser domingo, e mandaram um fax com cópias das páginas do passaporte contendo a numeração e dados de identificação, coisas que o guia me assegurou ser suficientes caso eu fosse requisitado pelas autoridades locais a apresentar meu passaporte. O hotel ficou então de remeter o meu passaporte para a sede da operadora de turismo, em Madri, cuja chegada deveria se dar no dia seguinte ou dois dias depois, na pior das hipóteses, e eu iria recebê-lo em mãos dali a cinco dias, quando o tour retornasse a essa cidade.

Confesso que não eram notícias tranquilizadoras, mas eu não tinha muito a fazer, a não ser torcer para não ser detido por uma autoridade qualquer por não portar meu passaporte, além de cobrar do guia, periodicamente, notícias sobre a chegada da remessa lusa de um passaporte tupiniquim para a capital da monarquia espanhola.

Depois de percorrer a Galícia, Leon, as Astúrias e a Cantábria, ao incessante som do Coldplay cantando Yellow – que era o único CD que o guia possuía a bordo -, finalmente retornamos a Madri. Fui avidamente resgatar meu passaporte que devia estar de posse do pessoal da operadora, mas disseram-me displicentemente que não havia chegado de Portugal.  Meu voo de regresso ao Brasil era no dia seguinte. Um furor uterino, se eu tivesse sido dotado com esse órgão, se apossou de mim. Minha mulher já vinha até reclamando da minha calma e passividade diante da situação, desde a saída de Lisboa. Desfilei uma série de impropérios multilíngues, acusações à competência histórica de todos os povos da Península Ibérica e adjacências, ataques enviesados e diretos ao guia, enfim: promovi um espetáculo de baixaria digno da indignidade que me estava vitimando.

Naquele fim de tarde não era mais possível tomar nenhuma providência, além de procurar o endereço do consulado brasileiro. Logo cedo pela manhã fomos até lá – ficava até perto de onde estávamos hospedados eu e minha mulher. Lá nos deparamos com a informação de que o horário de funcionamento era das 11:00h às 13:30h. Havia uma pequena fila formada na escada que dava para a porta da sala do consulado. Quando fui atendido, a gentil senhora atendente me fez saber que eu teria que dar queixa na polícia de furto do meu passaporte, trazer o registro da mesma e 2 retratos 5x7 (lembram?). Fui na delegacia mais próxima e fiz essa declaração falsa de que o passaporte houvera sido furtado. Depois fui procurar onde tirar as fotos nesse tamanho não usual que era usada nos nossos passaportes. Informaram-me que havia um estúdio fotográfico num local lá no centro de Madri que fazia tais fotos. Por curiosidade, olhei a minha carteira e descobri 2 fotos 5x7 de datas diferentes, sobressalentes de obtenção do atual e de passaporte anterior. Voltei ao consulado esbaforido. Já eram quase 13:00h. Quando fui atendido, a gentil senhora pegou o registro da queixa, olhou contrafeita para as minhas fotos e pediu meu documento de RG! Eu lhe perguntei o que me aconteceria se esse documento também tivesse sido furtado? Ela não me deu resposta. Entreguei-lhe minha carteira de médico. Ela aceitou e aí veio a cereja do bolo: pediu comprovantes de voto das últimas eleições!!! Sabem o que aconteceu? Eu tinha! Sabe aqueles papeizinhos que lhe entregavam na sessão eleitoral após o ato de votar? Estavam armazenados num compartimento da minha carteira, desde a eleição de Prudente de Morais!! Haha! Não me recordo a cara que a gentil espanhola fez ao me ver brandindo esses improváveis comprovantes.

Aí ela levou a papelada pro Cônsul e voltou com uma autorização de regresso ao Brasil, com uma das minhas fotos coladas no documento.

Aliviados, retornamos ao apart hotel em que estávamos hospedados. Na recepção se encontrava um envelope com o meu passaporte... É mole?

Ah, e não usei o tal documento do consulado. Passei no controle de passaportes com meu documento original (mesmo já tendo sido informado à polícia que ele havia sido furtado e, no mínimo, deveria estar numa lista suspeita). Que eficiência questionável desse sistema...

Para finalizar essa aventura, a Varig estava com overbooking. Ofereciam mundos e fundos para quem desistisse da viagem naquele voo e adiasse para o dia seguinte. Eu e minha mulher fomos chamados ao balcão. Pediram os nossos cartões de embarque (que eram da Classe Econômica) e uma mulher os rasgou, picotou, na nossa cara! Minha mulher levou as mãos à boca e me olhou atônita. Em seguida nos entregaram 2 outros cartões de embarque com assentos na Classe Executiva. Acho que, depois de tudo, fizemos jus!

sexta-feira, 29 de março de 2024

Salvador 475 anos. Eu, 50 anos em Salvador (com várias estadias temporárias anteriores).

 

Navios El Rey, João das Botas, Maragogipe, Itaparica e Espera “jogando” na meia-travessa; a visão progressivamente imponente da cidade, em camadas, vista do mar; chegada no cais da Companhia de Navegação Bahiana (ou só “Bahiana”); maçãs argentinas com muito cheiro e pouco gosto expostas sobre caixotes no Terminal da França; ônibus elétricos (trólebus) da SMTC na cidade baixa; cheiro da fábrica dos chocolates Chadler nos Mares e do Café Cravo no Caminho de Areia; leite Alimba na garrafa marrom entregue nas portas; subir pelo Elevador Lacerda e descer pelo Plano Inclinado; ver os outros tomando sorvete na Cubana (e não ter dinheiro pra tomar também); dar uma volta na escada rolante das Duas Américas; a “Mulher de Roxo”; ficar observando o desempenho coreográfico do Guarda Pelé orientando o trânsito: ver os cartazes dos cinemas Excelsior, Liceu, Astor, Popular, Tamoio, Guarany, Bahia, Capri, Bristol; assistir a um filme fumando na cabine de fumantes do Cine Bahia; comer um hambúrguer do Rose’s; uma banana split das Lojas Brasileiras; uma fatia de torta de tapioca do Savoy; um pastel do chinês da Carlos Gomes; um caldo de cana do meio de uma rua qualquer; passear na Avenida Sete olhando o interior das Lojas Sadel, M Kraychete, Radiolar, Florensilva, Romelsa, Saffilhos, Clark Calçados, A Norma…; ficar ouvindo um som na loja de discos da Fundação Politécnica e olhando o desfile das cocotas; um cachorro-quente no trailer do Tony’s ou no Baitakão; a esfiha de rosbife da Unimar da Fonte Nova; a ficha pros orelhões da Tebasa; entrar de penetra no Baile de Iemanjá, no Clube Português;  também penetrar no Grito de Carnaval do Fantoches da Euterpe e ainda dar espeto no bar; dar espeto também no Braseiro da Carlos Gomes, no Tatu Paka da Pituba, no Jereré de Amaralina; subir a Ladeira da Barra de “morcego” num ônibus da Vibemsa; ir num “xinxim de bofe dançante” no Bairro Macaúbas; fazer serenata na Lagoa do Abaeté; bater um baba no SESC de Piatã e depois comer uma dobradinha barata no restaurante do SENAC dentro do próprio clube; ir pra missa das 18:00h, dos domingos, na Igreja de Santana ou no Mosteiro de São Bento, só pra ver uma renca de menina bonita; ir pra faculdade andando pra economizar dinheiro pro lanche na cantina e pro ingresso do cinema; tomar uma cerveja no Peji, do Orixás Center ou farrear no Avalanches, do Canela; tomar vários chopes no Oceania, no Farol, quando os colegas pagavam minha parte; comer uma pizza depois de vários chopes na Dom Giovanni do terraço do Shopping Iguatemi recém-inaugurado; comer um galeto assado do abatedouro na esquina do Areal de Baixo, no Largo 2 de Julho; comer uma vara de pão de sal de semolina quentinha com manteiga derretendo e arrematar com uma garrafa de Guaraná Antárctica, em qualquer padaria das imediações do pensionato em que eu estivesse morando na Joana Angélica, no Lanat ou no Largo 2 de Julho; dar plantão como interno no atendimento de emergência no Pronto Socorro do HGV, no Canela, sonhando em ter um rápido tempo livre para atravessar a rua e fazer um lanche no Paes Mendonça defronte; namorar bastante no Largo 2 de Julho, noivar, casar na Igreja dos Aflitos, ter filhos paridos no IPERBA, preparados no ensino pelo Social e formados pela UFBA, netos paridos no Hospital Santo Amaro e Mater Dei, viajar muito e voltar sempre pra esta cidade, que não é mais a mesma, mas é quase igual.

sábado, 9 de março de 2024

Sobre um deus e fé

 

Eu levei um tempo da minha vida fazendo cherry-picking (escolha seletiva) em relação a possíveis evidências da existência do Deus bíblico.

Depois fui colher as frutas podres lá nas Escrituras e me permiti ver que todo o conjunto, de cabo a rabo, era obra humana, apenas humana, gritantemente humana.

A seguir abdiquei também da ideia de um deus criador, porque teria que imputar a ele o câncer ósseo infantil (só para ilustrar) - esse argumento não é originalmente meu. Sem contar os inúmeros vírus e outros microrganismos que acometem crianças e lhes causam imensos sofrimentos e sequelas (paralisia infantil, por exemplo). Face a tais exemplos, concluí que não podia levar adiante um sistema de crença em um ser superior criador com tal nível de canalhice. Convenhamos que ser superior canalha é uma contradição de termos, um oxímoro. A ideia do deus criador também traz a questão da necessidade de haver uma anterioridade e causalidade desse criador, ou seja, um criador do criador e toda essa sequência retrógrada teria que ter uma complexidade crescente. Explicando: um ser que cria o Universo (com maiúscula), este que é o único que conhecemos por enquanto, tem que ser necessariamente mais complexo que a sua criação e tem que ter sido criado por outra "entidade" criadora ainda mais complexa. Mas aí, os defensores do criacionismo lhe jogam na cara o argumento de esse deus - por que não deuses? Por que não o politeísmo (uma divisão de tarefas)?) - SEMPRE existiu! Ora, isso não é argumento sério: é um Deus ex machina!

Estou bem melhor sem deuses, sem alma, sem céu ou inferno, sem vida eterna, sem divino, sem destino. Saber objetivamente que o que tenho à disposição, na trajetória do universo até o seu colapso, se apresenta sob a forma da minha existência e atos nesse período de tempo entre meu nascimento e morte (e nada mais), faz a vida se tornar bem mais preciosa. Tudo se passará aqui nesse palco. Não tenho que remeter nada a planos imaginários post mortem. Ficarão aí, quando eu morrer, meus genes diluídos na minha descendência, meus escritos, árvores que plantei, outros tênues registros e referências... Depois de algum tempo já não serão mais vistos ou evocados. E terá sido isso. Nenhum propósito especial. Nenhuma missão. Nada além de um elo nas correntes da vida. Correntes que se estendem e se ramificam aleatoriamente sem rumo e sem nenhuma pretensão além de apenas ser e ser e ser e fim.

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O pior, o mais patológico das religiões organizadas é endeusar a fé, instigar e elogiar o crer sem prova, aceitar como verdadeiro algo para o qual não há evidências,  sob o argumento da autoridade de religiosos. Significa abolir o raciocínio, o pensamento crítico, não fazer uso das ferramentas que nossa espécie desenvolveu evolutivamente, porque isso coloca em risco o poder do pajé e a credibilidade da pajelança. A fé é a aceitação acrítica do pensamento mágico, a inclinação cognitiva para o pensamento ilusório (wishful thinking).

As religiões tratam espertamente de se blindar quando censuram e praticamente criminalizam a situação de ter seus dogmas ameaçados por uma fé cambaleante ou pela falta de fé. Além disso, criam outros “crimes” capitais como a blasfêmia, heresia, etc, que se tornam alvo de punições sociais imediatas (anátemas, excomunhões, opróbios) ou maldições que deverão se cumprir num pós-vida, nesse caso lançando mão da necessária invenção de demônios e inferno.

A fé é uma disposição mental escandalosa. O seu estímulo deveria ser denunciado como assédio intelectual, como insulto, e sua adoção deveria ser desencorajada e abolida nas futuras gerações desde a mais tenra infância.


domingo, 25 de fevereiro de 2024

Um sósia




Ao longo da vida tenho constatado evidências empíricas de que várias sequências do meu DNA têm sido usadas para reproduzir minhas características físicas, mormente as faciais. Sempre foi muito comum ser apresentado a alguém e ouvir um “você é cara de...”, “menino, você é irmão de ...?” ou mesmo apenas um “você me lembra muito...”

Esse assunto me foi trazido à mente agora depois de ler a matéria da BBC que pode ser encontrada nesse link: https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63600059

Entre as muitas histórias envolvendo sósias ou quase sósias que se passaram comigo, tem um episódio que aconteceu na minha adolescência, relacionado a um cara que diziam ser muito parecido comigo, e que era da mesma cidade do interior em que eu morava. Éramos companheiros de babas e convivíamos com as mesmas turmas. Eu não nos achava assim tão parecidos, mas sempre que eu ia reconhecer uma firma no Tabelionato de Seu Amabérico, ele me perguntava pelo meu pai (no caso, o pai do sósia) e eu tinha que lhe esclarecer que oficialmente meu pai era outro e que ele devia estar me confundindo com Afonso*.

Pois então, durante uma ensolarada manhã de domingo numa micareta, eu estava num bloco de maioria mascarada e suspendi a máscara até o topo da cabeça por uns instantes pra secar o suor do rosto. Depois recoloquei a máscara e continuei ali no meio do bloco. Logo em seguida, uma menina sem máscara me abraçou pela cintura e ficou me acariciando. Eu, agradavelmente surpreso, tratei de retribuir, depois de conferir os atributos físicos da desconhecida beldade e, na primeira oportunidade, saímos do bloco sendo atraídos para um beco onde poderíamos dar uns amassos mais privadamente, ainda que num espaço tão público (ambiente que para adolescentes com o cérebro inundado de hormônios é como estar numa ilha deserta – não se está nem aí para os circunstantes).

Então, num determinado momento, quando já nos encontrávamos adiantados nos procedimentos libidinosos palpatórios, osculatórios e assemelhados, ela me encarou bem e, assustada, exclamou: “Você não é Afonso, não?”.

Revelação: era namorada de Afonso! Vinha de outra cidade.

Ela me pediu mil desculpas! Eu a desculpei mil vezes e a fiz ver que foi um imenso prazer conhecê-la naquelas circunstâncias. Disse-lhe que Afonso era meu amigo (até então) e que eu nunca iria ter a iniciativa de colocá-lo a par daquele nosso momento de inocente mal entendido bem aproveitado, embora interrompido abruptamente. Ela se foi, devolvendo para mim algumas vezes um olhar confuso, até hesitante, eu diria, à medida que se distanciava. Resolvi voltar para o bloco e continuar sem a máscara, não sei se para evitar ou para atrair de volta a aturdida e inominada criatura.

Foi mal aí, Afonso, mas foi muito bom, pelo menos pra mim, ser seu sósia naquele dia!

 

*O nome verdadeiro do meu amigo, obviamente, está sendo omitido/substituído para manutenção da devida discrição que o incidente requer.

domingo, 4 de junho de 2023

Reflexões divinas

 



Resposta a um vídeo de um pastor, no qual ele diz que Deus não existe, ELE É; que Deus não se preocupa se você acredita ou não nele, e que Deus não é matéria de discussão de nenhuma natureza, de constatações, de demonstrações, de palpabilidades; que ele não existe porque não está em lugar nenhum pra ser demonstrado, pra ser provado:

[Vocês podem não acreditar, mas não há um só deus: há inúmeros. E eles não existem: SÃO. Tem deus que regula a gula, tem deus que controla a órbita dos planetas, tem deus especializado em definir e acompanhar o percurso das abelhas, tem deus que traz poemas e canções para alguns eleitos, tem até deus que ajuda o goleiro a defender pênalti. E eles não estão nem aí para o fato de você acreditar ou não neles. Eles não precisam de prova de suas existências porque vivem não existindo, mas sendo por aí indefinidamente sempre, desde sempre, e são imperscrutáveis por nossos limitadíssimos meios.]

É apenas um comentário sarcástico para confrontar a ideia de que se a existência da divindade não pode ser submetida a prova, logo qualquer ideia do que ela supostamente seja pode ser aventada e, consequentemente, validada, já que não pode ser testada nem, portanto, descartada. Então aí cabe o politeísmo, os duendes, quaisquer seres mitológicos, quaisquer ideias estapafúrdias, no papel de geradores e comandantes das sopas de ondas e partículas incertas que compõem esse universozinho de meu deus.