O Bahia entrou em minha vida pelos meus ouvidos. Nascido em Nazaré, interior da Bahia, no final da década de 1950 e lá sendo criado na década de 1960, seria natural que o rádio - o grande meio de comunicação de massas de então - viesse a ser, para mim, o introdutor da noção da existência de um time de futebol chamado Bahia. Mas não foi bem assim. As emissoras de rádio que se ouviam então em minha casa eram quase todas do Rio de Janeiro, e o que eu ouvia sobre times de futebol dizia respeito aos times de lá, inclusive menções a um time cujo nome me intrigava - o Canto do Rio. Fiquei com certa simpatia e curiosidade instantâneas em relação ao Canto do Rio, até descobrir que o mesmo era um saco de pancadas. Como desde cedo eu não demonstrava a menor tendência à martirização, tratei de me desvencilhar dessa incipiente simpatia por esse remoto e abstrato time que ficava jogado num cantinho qualquer, só recebendo porrada. Ou será que Canto do Rio se referia a uma canção do Rio, a um som vindo do Rio? Creio que nunca o saberei.
Então, com os meus ouvidos atentos às conversas de futebol dos adultos, entre frenesis de FLAxFLUs, entre citações a Castilhos, Zizinhos, Helenos de Freitas e Garrinchas, foi que um dia a conversa mudou e ouvi meu pai pronunciar “o Bahia vai ganhar”. Essa inusitada colocação do artigo definido masculino singular antes da palavra Bahia me pareceu, a princípio, um lapso paterno, motivado pela cachaça com limão que regava a conversa com os amigos dele em torno do balcão do Armazém Continental, nome pomposo para a vendinha que era de sua propriedade e que nos provia o precário sustento familiar. Como “o Bahia”? Com minha precoce e insuportável mania de corrigir os outros e sem muita cerimônia para decidir me intrometer em conversas de adultos, fui logo dizendo: é a Bahia, Painho! Ofendido e sem entender a gargalhada generalizada que se seguiu à minha impertinência, senti meu pai me carregar do chão afavelmente, me colocar em pé no balcão e me dizer: “Meu filho, a Bahia é um Estado e o Bahia é um Time!” Ainda meio atordoado com a revelação e com a embaraçosa cristalização do meu erro frente a tantas testemunhas, emendei, sem perder a pose: e quem é maior, a Bahia ou o Bahia?
Dessa vez as gargalhadas pareceram se dirigir mais à situação de desafio na qual meu pai tinha sido colocado pela minha pergunta do que a uma impropriedade do questionamento que fiz. Fiquei orgulhoso com minha esperteza e esperei ouvir de meu pai uma resposta convincente que, no caso, seria qualquer resposta que ele desse, porque, além de aceitar tudo o que ele dizia como verdade universal, eu não estava mais disposto a desafiá-lo, depois de já ter escapado com vida e ileso à malograda tentativa de correção. E ele me disse, mais ou menos, o seguinte: “Você nasceu na Bahia; o Bahia vai nascer dentro de você. Quando você for mais velho, saberá dos dois qual é maior”. Meu pai foi saudado com efusivos aplausos, gritos de “apoiado”, “segure na minha e balance”, entre outros cumprimentos que não entendi direito e não mencionarei aqui. Hoje em dia, dir-se-ia: “mandou bem”. Como eu falei anteriormente, aceitei sem pestanejar a resposta. Mas foi uma provocação decisiva para o meu futuro.
Criou-se em mim a imediata necessidade de obter informações sobre esse tal time chamado Bahia. E aí comecei a reunir retalhos daqui e dali. Surgiram referências a Nadinho, Léo, Marito, Alencar e Biriba entre outros; que eles ganharam do Santos de Pelé na Vila Belmiro, que foram campeões do Brasil jogando no Maracanã... Êpa! Maracanã eu conheço, quer dizer, ouço o rádio falar toda hora no “maior estádio do mundo” e ele fica no Rio. Se o Bahia foi campeão jogando lá, então só pode ser o maior time do mundo. Eu não ia precisar ficar mais velho para saber quem era maior: o Bahia é maior que a Bahia! O Bahia é o maior, é do tamanho do mundo! O Bahia é retado! - eu não podia falar essa palavra (retado) na época, porque era palavrão e pelo que meus amigos me diziam parecia ter uma conotação sexual, algo relacionado à ereção... então o Bahia era isso mesmo, retadíssimo.
O Bahia invadiu a minha vida. Foi começando a ganhar e ocupar um espaço transbordante. Caso típico de conteúdo maior que continente. Coisa de apaixonado que, clinicamente, não passa de um neurótico obsessivo. Passei a tentar ouvir as rádios da Bahia para ter mais referências. Não era fácil competir com a massacrante presença do futebol do Rio e tentar sintonizar Genésio Ramos, Souza Durão, José Ataíde... Mesmo na escola, entre meus colegas, ou no campinho do baba, eu não encontrava muita ressonância à necessidade de falar sobre o Bahia. Eu era julgado um esquisito total, quando pegava a bola e saía driblando adversários imaginários e fazendo tabelinhas idem, narrando “lá vai Biriba, passa por um, passa por dois, dá pra Alencar, pra Biriba, pra Marito, de cabeça e é gooooooolllll.... Goooollll do Bahia!”
O grande adversário de então, depois do Santos, era um time argentino, um tal de San Lorenzo D’Almagro contra o qual o Bahia jogou, após ter sido o primeiro Campeão Brasileiro e primeiro reprentante brasileiro na Taça Libertadores da América, e que parece ter feito um estrago desgramado na gente, porque meu pai guardava um absoluto silêncio quando eu me referia a esse time. Daqui da Bahia mesmo, eu só percebia que havia um respeito ao Fluminense de Feira, enquanto os outros times estavam todos mais ou menos no mesmo nível de inexpressividade: Ypiranga, Leônico, Botafogo, Vitória, São Cristóvão, Galícia (esse até que menos inexpressivo). Logo descobri que aqui na Bahia só havia dois grupos de torcedores: os que eram Bahia; e os que eram contra o Bahia, mas se diziam torcedores de algum desses times citados.
O mais interessante era que tudo isso se passava em mim no campo do intangível. Eu não tinha uma só evidência concreta da existência do Bahia. Nunca o tinha assistido jogar. Não sabia sequer as cores do time. Nunca tinha visto o escudo, o uniforme, uma foto sequer. Não conhecia o hino. Mas na primeira Micareta em que um Trio Elétrico foi a Nazaré, meus ouvidos foram hipnotizados pela guitarra elétrica do Tapajós tocando aqueles acordes introdutórios da obra do Professor Adroaldo Ribeiro Costa. Se um Trio Elétrico, por si só, com aquelas bocas de auto-falantes todas e aquelas luzes fluorescentes, já era mais que suficiente para causar um efeito encachapante numa criança interiorana, que dirá ouvir o Hino do Bahia solado na guitarra elétrica e em ritmo pulsante de frevo. No momento do refrão “Bahia, Bahia, Bahia”, a guitarra parou de tocar e só ouvi a multidão em uníssono e pulando sincronicamente me ensurdecer e me arrebatar com aquele som que parecia ecoar para além da galáxia. Que zorra era aquela? Que era aquilo, meu Deus? Os céus haviam de estar ouvindo aquele grito que emanava do fundo, do mais profundo e primevo âmago daquelas almas viventes.
A primeira vez que vi o escudo e as cores do Bahia foi quando meu pai apareceu em casa com um bloco de papel em que estava escrito “Bolo Tricolor”. Perguntei a ele o que era aquilo e ele disse que era algo como uma loteria e que era do Bahia. Fiquei ali pasmo olhando aquelas folhas impressas com as cores mais bonitas que eu já tinha visto juntas. Acompanhei extasiado meu pai escrevendo os palpites dele para jogos vindouros que eu não sabia bem quando seriam. Depois pedi para ele me dar uma folha daquelas. Passou a ser meu fetiche. Estava sempre dentro de um caderno ou livro meu. Na escola eu me distraía por vezes das aulas só para poder ficar contemplando aquele escudo com o nome completo do time Esporte Clube Bahia, o ano de 1931, e com a bandeira da Bahia sem o triângulo, mas com um círculo em seu lugar contendo outra bandeira idêntica menor com outro círculo indicando que o Bahia iria se multiplicando numa perspectiva infinita. Era uma obra de arte. Era a minha Capela Sistina, minha Mona Lisa, meu Nascimento de Vênus, exageros à parte.
Receio não saber precisar exatamente quando foi que vi o primeiro jogo do Bahia pela televisão. Primeiro porque na minha casa não tinha esse raríssimo aparelho e segundo porque eu só via rapidamente um videotape de jogo de futebol no domingo ao meio-dia, quando estava na casa de alguém que tinha TV (o que era raro), e geralmente eram jogos do Rio ou São Paulo de 02 ou 03 semanas atrás, apresentados pomposamente por Ivan Pedro, posteriormente por Milton Cóllen, na TV Itapoan (a única que existia à época), com narração dos locutores do Sul. Creio que o primeiro jogo do Bahia que devo ter visto foi provavelmente alguma partida do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, que depois virou Taça de Prata, semente do que hoje é o Campeonato Nacional, lá pelos idos de 1967-68.
Nessa época, já mais crescido, eu construí, quer dizer, montei, aliás, mais precisamente, armenguei um time de botão com tampas de Pinho Sol, recipientes de pó compacto Cashmere Bouquet, pedaços de mica sobrepostos, colados com Araldite e lixados no cimento do passeio da minha casa. Era o meu Bahia: Jurandir, Mura, Zé Oto, Adevaldo e Paes; Amorim e Elizeu; Baiaco (ou Gajé), Zé Eduardo, Sanfilippo e Canhoteiro, mais ou menos a escalação do time Campeão Baiano de 1967, segundo eu me recordava. Se esteticamente os botões não faziam jus às tradições e glórias do Esquadrão de Aço, os resultados em campo não o faziam passar vergonha. Muito pelo contrário. Meus adversários, passada a fase inicial de chacotas e gozações com o aspecto pouco convencional dos meus jogadores, logo sentiam na pele (e no fundo do filó) a força e a magia do time homônimo que representava. Nos nossos campeonatos o troféu era um guaraná Fratelli Vita. Como eu ganhava quase sempre, o guaraná Fratelli passou a ter o sabor do Bahia. E era engraçado como alguns tabus que o Bahia real mantinha se reproduziam também no jogo de botão: eu não perdia um jogo sequer para o Flamengo. Se o time que ia me enfrentar se chamasse Flamengo já podia ir preparando a choradeira, porque não ganhava nem a pau. Lembro-me da época da reinauguração da Fonte Nova. O primeiro jogo iria ser Bahia x Flamengo. Momentos antes de começar o clássico na Fonte, eu tinha jogado uma partida de botão com um colega e disse que o resultado daquele jogo nosso seria o mesmo do jogo na Fonte. Dei 1x0 no botão, gol de Zé Eduardo. Advinhem o que aconteceu na Fonte? Coincidência, bruxaria, magia? Não: Bahia.
Falei de Baiaco no meu time de botão. Outro dia ouvi uma entrevista do ex-zagueiro tricolor Sapatão, dizendo que Baiaco foi o melhor jogador com o qual ele já jogou. No meu time de botão, Baiaco entrava e saía, revezando com Gajé, que era ponta-direita (no time do Bahia também). Acho que, assim como no meu time de botão, Baiaco foi um injustiçado no time do Bahia. Numa época em que os esquemas eram em sua maioria 4-2-4, Baiaco, quando colocado como médio-volante (hoje chamado de cabeça de área), descobriu, antes da Ciência, o processo de clonagem. Multiplicava-se. Aparecia em tudo quanto era canto do campo. Marcava incansável e lealmente como ninguém (que o digam Pelé e Rivelino). Conduzia bem a bola. Driblava quando necessário. Lançava. Cruzava, chutava a gol. Eventualmente fazia até uns golzinhos (como o que fez no 1x1 contra o Santos, quando Pelé estava para marcar o milésimo gol). Mas, ao dar entrevistas, gaguejava e mostrava um vocabulário e sintaxe precários, justificados pelas suas origens humildes e baixa escolaridade. Virou personagem de anedotário. Isso certamente teve grande influência no seu destino e no espaço exíguo que a história lhe reservou. Mas devemos reconhecer que Baiaco foi o grande símbolo do Bahia. A nossa grande metáfora. Baiaco tem Bahia no nome.
Falando no milésimo gol de Pelé, essa histórica partida contra o Bahia, em que os olhos e ouvidos da imprensa do país estavam todos voltados para a Fonte Nova, marcou o início da minha convicção de que cruzar os dedos é uma maneira cientificamente infalível para secar um adversário. Foi a primeira vez que vi meu pai fazendo tal gesto. Quando ele me explicou a incrível utilidade daquilo, imediatamente entrei na corrente e comecei a secar Pelé. Ninguém que fosse torcedor do Bahia queria que ele fizesse o tal gol em cima de nós – ao contrário do ele faz parecer nas entrevistas e documentários em que se refere a esse evento. Eu estava ouvindo o jogo pelo rádio e no momento crucial em que ele ia fazer o gol, “lá vai Pelé, dribla o primeiro, dribla o segundo, vai marcar, atira...”, eu, que já estava com os dedos das mãos cruzados, imediatamente cruzei também os dedos dos pés (“...salva milagrosamente Nildo Birro-Doido, em cima da linha!”). Pelo rádio dava para ouvir a torcida comemorando como se fosse a defesa de um pênalti; nunca as vaias que Pelé disse terem sido dadas para o nosso zagueiro Nildo. Pelé também não sabe até hoje que eu tive participação decisiva naquele lance. Bestão.
No final da década de 1960, depois do início da participação do Bahia em torneios com ares evidentes de campeonatos nacionais, comecei a perceber mais amiúde a presença de torcedores do Bahia no meu meio social que, por sinal, era bastante diversificado.
Foi então que tive a oportunidade de vestir uma camisa do Bahia e jogar pelo Bahia. Claro que nem a camisa nem o time eram os originais. A camisa era aquela genérica Hering, toda branca, com frisos azuis nas mangas e na gola, além do indispensável escudo pintado, que a fazia diferir, enormemente ao meu ver, das outras camisas, quase idênticas e também genéricas, dos outros times. Elas eram vendidas na Loja de Valzinho, único estabelecimento na cidade que dispunha dessas preciosidades.
Quanto a jogar pelo Bahia, o fato foi que se criou um campeonato de dentes-de-leite em Nazaré e eu fui selecionado para envergar o citado manto tricolor como centro-avante do Bahia da Rua do Sapo. Foi a glória. Mesmo com um físico que estava mais para gandula, lá fui eu defender as nossas cores e a honra do bairro da Conceição, com um gigantesco número 9 às costas, feito e aplicado à camisa por minha mãe. O ataque do meu time era: Diabo Louro, eu e Bofe. Meu negócio era cabecear. Os dois pontas eram o sonho de todo centro-avante: Diabo Louro era um ponta-direita rápido e driblador, tipo Tirson; Bofe era um destro que jogava pela esquerda, atarracado como Naldinho e esperto como Jésum. No nosso primeiro jogo, demos 9x0 e eu fiz cinco gols. Comemorei cada gol com os dedos das mãos em V, símbolo da “Paz e Amor”, imitando Mickey, que à época era o centro-avante do Bahia de verdade. A torcida à margem do campo era numerosa e era do Bahia. Virei instantaneamente o artilheiro do campeonato. Nos jogos seguintes não fui tão eficaz e prolífico. Fiz apenas mais dois gols (um de cabeça e outro de pura cagada). Ainda assim fui o artilheiro, porque o campeonato não acabou, devido a mazelas dos cartolas, que não conseguiram se entender. Mas eu entendi que aquilo tudo tinha sido muito bom enquanto durou. Eu jogara no Bahia.
A Fonte Nova já havia sido reinaugurada, com o acréscimo do anel superior, e eu não conhecera a Fonte Nova velha nem tampouco conhecia ainda a nova. E o mais importante: ainda não tinha ido num estádio ver o Bahia jogar. A oportunidade surgiu justamente na final do Campeonato Baiano de 1971. Um bocado de torcedor empolgado de Nazaré decidiu ir para Salvador ver o jogo (na verdade, se dizia “ir à Bahia”, quando se queria referir a viajar até Salvador). Era um BAvi. Foi um suplício convencer meu pai a me deixar empreender essa perigosa jornada. Mas consegui. As coisas que mais me recordo ao ter o primeiro contato com a Fonte Nova foram cores. O gramado era verde! Mas era verde mesmo. Não era aquele cinza que eu via na TV em preto e branco. Que coisa maravilhosa... Que vontade de bater um babinha ali...Após esse primeiro impacto, mais cores lindas se impregnaram na minha retina: as bandeiras tricoloridas. Tinha até bandeira do Estado da Bahia sacudindo pra lá e pra cá (a Bahia cabendo dentro do Bahia). O que era aquilo? Era mais bonito que desfile de Sete de Setembro. Eu estava completamente magnetizado, embevecido. Mas ainda não tinha visto nada.
Antes de começar o jogo, alguém soltou uma pomba branca com umas fitas azuis, vermelhas e brancas amarradas nas patas. Ela deu umas voltas sobre as arquibancadas, fiquei com medo de que dessem uma badogada nela quando passou voando por cima da torcida do Vitória, mas ela passou incólume e, magicamente, deu um vôo rasante, indo se alojar dentro das redes do gol do Dique. Nesse momento, houve gritos vibrantes de gol ecoando no estádio (e umas vaiazinhas de um cantinho da arquibancada, é bem verdade). Quando o Bahia entrou em campo, as cores deram lugar ao som. Era uma sinfonia interminável e altissonante de “Bora Baaaêêaa!”. Quase não vi o time, pois todos à minha frente se levantaram e eu não tinha ainda a estatura de adulto. Novamente os meus ouvidos eram a porta de entrada do Bahia num momento marcante da minha vida. Antes de começar o jogo, um estranhamento: o Bahia ia jogar o primeiro tempo atacando para o gol do Dique! Estranho, muito estranho... (soube depois que Florisvaldo, que era uma espécie de faz-tudo no Bahia, mandou o nosso capitão, caso ganhasse o toss, escolher jogar o primeiro tempo para o lado do Dique, por causa da pomba). Começa o jogo e, pouco tempo depois, a bola é lançada para o atacante Adilson. Ele penetra na área e o goleiro do Vitória o segura ao ser driblado. Pênalti! Arthur faz a cobrança e direciona a bola precisamente para o canto e local da rede em que a pomba havia pousado: gol. É gol, porra! É gol, caraio! É gol, miséra! É gol do Bahia! Fui abraçado por gente que nunca tinha visto na vida, jogaram-me pra cima, molharam-me de cerveja (eu acho que era cerveja). Tive a impressão que era impossível que aqueles gritos não estivessem sendo ouvidos lá em Nazaré. O jogo terminou nesse 1x0. Bahia campeão, em cima do Vitória. Tive a certeza de que não dava para ser mais feliz que isso em minha existência.
A década de 1970 testemunhou 09 títulos baianos conquistados pelo Bahia. Entre eles, um hepta-campeonato. Foi quando me mudei do interior para vir estudar em Salvador. Foi a década de Douglas - o maior jogador que vi vestindo a camisa do Bahia. Meio de campo: Baiaco e Fito. Ataque: Natal, Douglas, Picolé e Peri. Que ataque! As tabelinhas de Douglas e Picolé nunca tiveram sucessores. É imperdoável que não tenhamos videotapes desses momentos, pois a maioria das coisas sublimes que testemunhei são impossíveis de descrever. Mas eu vi, meus amigos, eu vi. Virei rato de Fonte nova. Fui morar num pensionato na Avenida Joana Angélica, vizinho ao estádio. Não tinha dinheiro para o ingresso e comecei a me especializar em xaréu. Ouvia o primeiro tempo no rádio e quando estava para dar o intervalo lá ia eu para a porta do estádio, ficar sentindo o cheiro do churrasquinho de gato (que eu não tinha dinheiro para comprar) e esperando abrir o portão para ver o segundo tempo todo. E vi Buticce, Roberto Rebouças, Beijoca, Jorge Campos, Romero, Leguelé, Washington Luís e até Piolho. Depois descobri que o porteiro responsável pela entrada que dá nas cadeiras cativas costumava deixar o portão encostado tão logo o jogo começava e se picava do seu posto. E lá ia eu me esgueirando e logo estava sentado nas cadeiras, na maior pose. Isso só durou até as estatísticas mostrarem que, indubitavelmente, aquele lugar dava azar. A maioria dos jogos que eu via lá nas cativas resultava em empate (a menos que o jogo estivesse sendo narrado por Fernando José – aí era triunfo garantido). Na época, a diferença entre empate e derrota do Bahia na Fonte era praticamente nenhuma. Voltei para o meu xaréu e para a arquibancada. O Bahia voltou a vencer todos os jogos aos quais eu assistia.
A minha viagem no tempo e nas minhas sensações adormecidas pára aqui. Claro que houve momentos marcantes e gloriosos do Bahia nos últimos 27 anos, como os 5x0 no Santa Cruz, o título do Campeonato Nacional de 88, o gol de Raudinei, etc. Mas a construção de um peito tricolor como o meu foi forjada a ferro e fogo, a som, imagem, aromas, gostos e contatos, nos anos mais remotos da minha existência e por eles nutro o carinho que se destina às memórias afetivas indeléveis da infância/adolescência onde o real, o imaginário e o ideal se fundem e se tornam indissociáveis, indissolúveis, indistinguíveis. Esse é o Bahia que se formou em mim. Esse é o Meu Bahia.
Hoje estamos vivendo tempos bem diferentes na história e destino desse clube. Há em curso uma campanha “Devolvam o meu Bahia”. Eu simpatizo e me alio a essa campanha, mas não estou sendo honesto ao pronunciar esse bordão. Eu não posso pedir para devolverem aquilo que eu não perdi. O meu Bahia é esse que referi e tentei mostrar atropeladamente. Esse Bahia continua e continuará comigo até que a morte ou o Mal de Alzheimer nos separe. Ninguém jamais o usurpará. Nenhum insensível, egoísta, megalômano, prepotente, ególatra e incompetente dirigente o fará se tornar menos meu. O meu Bahia vai morrer comigo quando eu me for, mas o Bahia dos dirigentes pode morrer com eles ainda vivos.
Quando assino o manifesto “Devolvam o meu Bahia”, o que realmente estou querendo exprimir é: dêem à criança de hoje, ao meu filho ou a um futuro neto meu, ao menino da favela, do interior, do conjunto residencial, do bairro médio, do bairro pobre, do “bairro nobre”, a oportunidade sagrada de ter os seus sentidos invadidos pelo Bahia, de tirar a máxima satisfação e ter o maior orgulho em vestir a camisa tricolor numa segunda-feira, de poder ter elementos para concluir, como a criança que um dia meu pai provocou, que o Bahia é maior que a Bahia.