A Carne
Não sei se posso generalizar, mas acho que, quando as pessoas se aproximam perigosamente de meio século de existência - como está ameaçando acontecer comigo – começa-se a fazer mais amiúde as grandes e profundas perguntas filosóficas. Coisas como o sentido da vida, existência ou não de Deus e de vida após a morte (mormente quando não se tem certeza de haver vida durante a vida), os porquês todos e de tudo, etc, etc.
Eu, que não tenho nenhuma capacidade de aprofundamento, ando seriíssimamente preocupado em ter que abandonar os prazeres da carne. Os mais apressados hão de concluir que me refiro à luxúria. Ledo engano - com o passar do tempo, esses tipos de prazeres carnais vão se tornando mais uma vaga lembrança do que uma experiência prática, só que ninguém admite (nem eu), e ficamos só fazendo sexo oral: falando, falando, falando. Refiro-me mesmo é ao prazer (não pecado) de comer carne (no sentido digestivo, não no bíblico). E, mais especificamente, à incomparável sensação de comer uma carne de sertão.
As minhas heranças genéticas somadas às inexoráveis voltas em torno do Sol apontam para o avizinhamento dessa assustadora possibilidade de cerceamento dietético. Nada me fará mais infeliz. Que sentido terá a minha vida sem um naco dessa carne maravilhosa e democrática? Será que vou ter que me contentar em passar a comer isopor, polipropileno ou folhas com gosto de gramíneas, como a rúcula?
Se eu nunca mais puder colocar um pedaço de carne de sertão na grelha e sentir seu aroma se espalhando criminosamente pelo bairro, enquanto preparo uma farofa de água – combinação perfeita – para depois degustar com um molho lambão, nada mais fará sentido. E o que dizer daquele ensopado de abóbora com um charquezinho? E as quiabadas? Vão ser na base do quiabo com quiabo? O escondidinho vai esconder o quê? Repolho? Os cozidos e as feijoadas vão pegar gosto de que forma? Com couve? O arroz-de-carreteiro vai ser na base do risoto de espinafre? Isso é a visão mais próxima do Apocalipse que posso conceber.
Na época do Plano Cruzado, quando houve generalizado desabastecimento de quase todos os gêneros alimentícios, o que mais me aterrorizou foi a falta da carne de sertão. Depois de conseguir leite de Chernobyl e de achar um açougue no fim de linha de Pirajá que tinha um mirrado e disputado estoque da carne de boi que minha mulher exigia que eu providenciasse, para provar que eu era macho e voltar a me dirigir a palavra, saí em missão cívica e olímpica atrás de preciosa carne de sertão. Coloquei em funcionamento minha rede de informantes do Engenho Velho da Federação ao Pau da Lima, passando pela Mata Escura e adjacências. Finalmente chegou a notícia, pouco precisa, que havia uma barraca na Feira de São Joaquim que tinha a bicha, quer dizer, a carne.
Peguei o meu Passat 76, o Missão Impossível (esse carro se auto-destruirá em 5 segundos), e rumei para lá. Como a informação foi genérica, passei a percorrer freneticamente aquele labirinto babélico. Pergunta daqui, pergunta dali, finalmente achei o tesouro: três enormes mantas de charque. Vai querer dianteiro ou ponta de agulha? – perguntou-me o feirante. Ora, meu amigo, pode enfiar a agulha no dianteiro, no traseiro, que eu vou é levar tudo! Descapitalizei-me, é bem verdade, mas comprei carne de sertão que durou até quase o Plano Real. Devo confessar que o carro ficou com aquele cheiro característico por um bom tempo e logo depois apareceu um buraco no porta-malas, acho que foi por causa do sal da carne, mas nem liguei. Na verdade, tive até a idéia de usar pedaços do carpete impregnado no caldo do cozido, para dar um gostinho, mas, minha mulher, não sei por quê, rejeitou minha sugestão furiosamente.
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