domingo, 7 de outubro de 2007

A carne

A Carne

Não sei se posso generalizar, mas acho que, quando as pessoas se aproximam perigosamente de meio século de existência - como está ameaçando acontecer comigo – começa-se a fazer mais amiúde as grandes e profundas perguntas filosóficas. Coisas como o sentido da vida, existência ou não de Deus e de vida após a morte (mormente quando não se tem certeza de haver vida durante a vida), os porquês todos e de tudo, etc, etc.

Eu, que não tenho nenhuma capacidade de aprofundamento, ando seriíssimamente preocupado em ter que abandonar os prazeres da carne. Os mais apressados hão de concluir que me refiro à luxúria. Ledo engano - com o passar do tempo, esses tipos de prazeres carnais vão se tornando mais uma vaga lembrança do que uma experiência prática, só que ninguém admite (nem eu), e ficamos só fazendo sexo oral: falando, falando, falando. Refiro-me mesmo é ao prazer (não pecado) de comer carne (no sentido digestivo, não no bíblico). E, mais especificamente, à incomparável sensação de comer uma carne de sertão.

As minhas heranças genéticas somadas às inexoráveis voltas em torno do Sol apontam para o avizinhamento dessa assustadora possibilidade de cerceamento dietético. Nada me fará mais infeliz. Que sentido terá a minha vida sem um naco dessa carne maravilhosa e democrática? Será que vou ter que me contentar em passar a comer isopor, polipropileno ou folhas com gosto de gramíneas, como a rúcula?

Se eu nunca mais puder colocar um pedaço de carne de sertão na grelha e sentir seu aroma se espalhando criminosamente pelo bairro, enquanto preparo uma farofa de água – combinação perfeita – para depois degustar com um molho lambão, nada mais fará sentido. E o que dizer daquele ensopado de abóbora com um charquezinho? E as quiabadas? Vão ser na base do quiabo com quiabo? O escondidinho vai esconder o quê? Repolho? Os cozidos e as feijoadas vão pegar gosto de que forma? Com couve? O arroz-de-carreteiro vai ser na base do risoto de espinafre? Isso é a visão mais próxima do Apocalipse que posso conceber.

Na época do Plano Cruzado, quando houve generalizado desabastecimento de quase todos os gêneros alimentícios, o que mais me aterrorizou foi a falta da carne de sertão. Depois de conseguir leite de Chernobyl e de achar um açougue no fim de linha de Pirajá que tinha um mirrado e disputado estoque da carne de boi que minha mulher exigia que eu providenciasse, para provar que eu era macho e voltar a me dirigir a palavra, saí em missão cívica e olímpica atrás de preciosa carne de sertão. Coloquei em funcionamento minha rede de informantes do Engenho Velho da Federação ao Pau da Lima, passando pela Mata Escura e adjacências. Finalmente chegou a notícia, pouco precisa, que havia uma barraca na Feira de São Joaquim que tinha a bicha, quer dizer, a carne.

Peguei o meu Passat 76, o Missão Impossível (esse carro se auto-destruirá em 5 segundos), e rumei para lá. Como a informação foi genérica, passei a percorrer freneticamente aquele labirinto babélico. Pergunta daqui, pergunta dali, finalmente achei o tesouro: três enormes mantas de charque. Vai querer dianteiro ou ponta de agulha? – perguntou-me o feirante. Ora, meu amigo, pode enfiar a agulha no dianteiro, no traseiro, que eu vou é levar tudo! Descapitalizei-me, é bem verdade, mas comprei carne de sertão que durou até quase o Plano Real. Devo confessar que o carro ficou com aquele cheiro característico por um bom tempo e logo depois apareceu um buraco no porta-malas, acho que foi por causa do sal da carne, mas nem liguei. Na verdade, tive até a idéia de usar pedaços do carpete impregnado no caldo do cozido, para dar um gostinho, mas, minha mulher, não sei por quê, rejeitou minha sugestão furiosamente.

Por tudo isso, nesse momento filosófico da vida, já tenho uma clara certeza: o sentido da vida é comer carne de sertão. Seja ela crua com farinha seca, frita, assada, cozida, ensopada. E se depois da vida eu me vir num lugar em que não exista carne de sertão, será o inferno.

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