domingo, 7 de outubro de 2007

DAS DORES E DOS REMÉDIOS

DAS DORES E DOS REMÉDIOS

  
Desde a infância que o destino parecia conspirar para manter juntas Pombinha e Santinha, apelidos que ganharam, ainda pequenas, Ma das Dores e Ma dos Remédios, respectivamente. Nasceram e se criaram na rua da Lambreta, uma avenida de casinhas de três cômodos, unidas parede com parede, perto do pasto do Barão, na cidade de Nazaré, que os baianos, não nascidos lá, chamam de Nazaré das Farinhas. Passaram pela mesma tentativa de alfabetização, freqüentando a sala de aula do curso primário que a prefeitura mantinha no salão do centro espírita da rua do Sapo. Juntas, esfregaram limão no local da vacina contra a varíola - ou bexiga, como chamavam -, para esta não “pegar”. Tomavam, na merenda escolar, mingau de milho feito com fubá e leite em pó doados pela Aliança para o Progresso. Filavam aulas para ir tomar banho de rio no “rego das moças”, depois de asseguradas que suas mães, ambas lavadeiras, já haviam recolhido as roupas que quaravam sobre as ilhotas e retornado para casa. Quis o inevitável que ambas seguissem as ocupações maternas. Passavam dias inteiros, sob sol e chuva, batendo roupa nas pedras do rio Jaguaripe, ora no mesmo local em que costumavam ir para se divertir, ora num ponto mais acima, o “poço do robalo”. Uma das poucas coisas em que diferiram foi na escolha do companheiro: Pombinha amigou-se com Filinho, pedreiro nas horas vagas, e jogador de dominó e cachaceiro nas horas ocupadas; Santinha teve um caso que não deu certo com Tatá, que pescava pitu de vez em quando, e acabou se amancebando com Anilson, feirante em tempo integral.

Os mais supersticiosos, e até mesmo os cartesianos, atribuem ao peso dos nomes de batismo de ambas o fato de Pombinha ter tido uma vida vexada e repleta de sofrimentos, e de Santinha ter-se tornado versada em artes diagnósticas e terapêuticas, recorrendo a toda a sorte de infusões, rezas e beberagens para medicar as doenças ou sintomas que tomava conhecimento direto ou indireto. Para os casos em que suas prescrições não obtinham sucesso ou não logravam o efeito desejado, Santinha tinha o bom senso de se dar por vencida, mas costumava cometer o temerário ato de indicar a especialidade médica a ser consultada pelo sofrente. Em resumo: virou uma curandeira e palpiteira contumaz! Desde que o único médico clínico da cidade Dr. Demósthenes se aposentou sem que nenhum outro viesse a substituí-lo, os palpites de Dona Santinha tornaram-se o referencial para boa parte dos habitantes do lugar, que já tinham sido alcançados pela sua fama. Não faltava quem dissesse que se ela cobrasse por tais consultas, poderia muito bem deixar o ofício de lavadeira. Mas Santinha achava que isso era dom de Deus, e que Ele não ia gostar que ela cobrasse por algo que recebeu de graça. É bem verdade que o pessoal da roça sempre trazia umas pencas de banana da terra, uns saquinhos de farinha de mandioca, uns franguinhos, uns quiabinhos, e não ficava bem ela mandar levar de volta.

Inúmeros tinham sido os purgantes, as lavagens, os chás de boldo, carqueja, capeba, folha de abacate, sabugueiro, garrafadas, que Santinha já tinha preparado e ministrado para reverter os mais diversos sintomas e sinais apresentados pela sua amiga e comadre Pombinha. De “espinhela caída” a “difluxo”, de “tiriça” a “linfatismo”, tudo aquilo que Pombinha manifestara no campo das enfermidades já tinha sido alvo da intervenção de Santinha, que lançava mão instintiva e aleatoriamente do efeito placebo, e do princípio similia similibus curantur, da Homeopatia, ou do contraria contrariis curantur, da Alopatia. O tempo decorrido para a cessação dos males era, no mais das vezes, um pouco longo. Mas o fato é que os curados ficavam extremamente agradecidos, e os mortos nunca voltaram para reclamar, também porque quando Deus chama, não há doutor que dê jeito. Não era à toa que Pombinha depositava uma cega confiança na comadre, haja vista os seus sucessivos acertos ou, como ela mesma dizia, sucessivos sucessos.

Eis que, numa dessas manhãs embaçadas de junho, em que a neblina oculta a parte da cidade situada na outra margem do rio, Pombinha amanheceu entrevada. Diríamos, um pouco mais entrevada que o habitual. Quando Santinha chegou com a enorme trouxa de roupas que lhe caberia lavar naquele dia, encontrou a comadre ainda na cama. Nenhuma tentativa de injetar ânimo surtiu efeito. Perguntada sobre o que estava sentindo, Pombinha respondeu que estava com “umas pontadas nos ossos, umas dores nas juntas, uma dorzinha de cabeça, uns arrepios e sem apetite”. Já vinha sentindo algo parecido há uns dias, mas se fez de forte e não quis incomodar a comadre com mais um queixume. Afinal, fazia só umas semanas que ficara boa daquela ferida nas partes, e a íngua já tinha diminuído bastante, tudo graças ao mastruz e à enxúndia de galinha que a comadre Santinha aplicara diariamente.

A comadre  Pombinha não tinha que se preocupar, pois a causa parecia muito simples: tudo levava a crer que se tratava de um princípio de gripe ou resfriado, por causa da friagem do rio, nessa época do ano. Deveria tomar os chás que ela já estava acostumada e logo estaria de pé. Informada pela doente que esta já houvera tomado chá de alho, com limão e mel, sem que observasse resultado benéfico, Santinha sugeriu que adicionasse à prescrição uma gemada, com leite bem gordo e bastante canela. No dia seguinte o quadro foi acrescido de umas pintas no corpo, com uma leve coceira. A prescrição habitual foi purgante, para limpar o intestino e o sangue, pois aquilo devia ser “intochicação” ou alergia. Quando começaram a cair uns pelos das sobrancelhas e da parte do couro cabeludo detrás das orelhas, Santinha achou que era hora de a comadre procurar um médico especialista. Pela lógica do seu raciocínio, Pombinha devia consultar um “médico de cabeça”, já que o problema da queda dos pelos se concentrava nessa região do corpo.

Dias depois, amealhados os parcos recursos que dispunham, pegaram carona com Seu Irênio, que toda semana levava farinha e carne de fumeiro, em sua Variant, para vender em Salvador. Providencialmente, a passagem do ferry foi paga por Seu Irênio, devedor de alguns favores a Dona Maria dos Remédios. Ficaram hospedados na casa da prima Laurinha, que tinha uma casa ajeitadinha mesmo, lá na Mussurunga, comprada pelo marido Valtinho com o dinheiro ganho em sua atividade na loteria zoológica. As peregrinações pelos postos de saúde e clínicas conveniadas com o SUS tiveram início imediato. Logo ficaram sabendo que para marcar consulta com um “médico de cabeça” teriam antes que passar por um Clínico Geral. Santinha protestou, pois ela já sabia que tipo de médico a comadre precisava. Não precisava um outro médico, desses clínicos gerais que sabem pouco de muita coisa, mas não sabem muito de coisa nenhuma, viesse só confirmar o que ela já estava cansada de saber, só para assinar um papelzinho encaminhando o caso a outro. Além do mais, não tinha mais vaga para consulta no mesmo dia. Teriam que voltar depois. Tentaram um posto de emergência, mas foi-lhes dado a saber que aquele caso não se caracterizava como urgência. Saíram soltando imprecações contra o interno que fez tal comunicação. Voltaram para casa desanimadas e revoltadas. Foi aí que a prima Laurinha teve a idéia de usar a carteira da assistência médica supletiva a que tinha direito, como dependente do marido. Com um pouco de sorte e uns pequenos retoques na carteira de identidade de Pombinha, o problema seria solucionado. Dessa forma, era só pegar o manual e marcar o especialista desejado. Dito e feito. Na manhã seguinte já se dirigiam ao Neurologista.

Houve uma pequena discussão na recepção do consultório quanto ao cumprimento do horário marcado para a consulta, já que a toda hora alguém que não Maria das Dores era chamado a entrar. Uma vez na sala do médico, este perguntou qual era a queixa. Santinha se adiantou, respaldada pela timidez da comadre e pela sua larga experiência de curandeira, assumindo a condição de porta-voz:

- É um pobrema na cabeça dela, Dotô. Se não fosse, a gente não tava aqui, não é?

- Sim, mas que problema? O que a Sra. sente na cabeça? - perguntou o médico, dirigindo-se à paciente.

- Ela tá com umas dor de cabeça e o cabelo tá caindo dos lado! E ainda tá com umas pinta no corpo! - antecipou-se, mais uma vez, Santinha.

- Bem, o problema das dores de cabeça eu vou investigar. Já a questão da pele e da queda de cabelos deve ser encaminhada a um Dermatologista, que é o especialista nessa área. A Sra. vai fazer esses exames que eu escrevi aqui e tomar esse remédio aqui para a dor. Quando tiver com o resultado na mão, a Sra. retorna. - concluiu o Neurologista.

Na saída do consultório Pombinha reclamou que o doutor nem botou a mão nela. Laurinha disse que era assim mesmo, que ele tinha estudado e sabia o que estava fazendo. Agora elas tinham que marcar os exames e procurar o médico… como era o nome mesmo da especialidade que o doutor falou? Ninguém se lembrava direito. Voltaram para casa. Pombinha continuava se queixando de dores nas juntas.

- Vamo marcar uma consulta com um “médico de osso”, pra ver essas dor nas junta da cumade! - opinou Santinha, com autoridade.

Marcaram o Ortopedista para três dias depois, numa clínica mais ou menos próxima ao hospital em que iriam para realizar a tomografia computadorizada do crânio. No dia seguinte estava marcado o eletrencefalograma.

Pombinha gostou muito da consulta com o Ortopedista, porque, pelo menos, ele pegou nela. Palpou as juntas que doíam, apertou, dobrou pra lá e pra cá. Disse que podia ter uma leve inflamação, mas não tinha certeza. Disse que a dor nas pernas podia ser, também, devida a varizes. Aconselhou uma consulta com um Angiologista e deu uma solicitação de raios-X e ultra-sonografia das articulações, além de prescrever um anti-inflamatório. Dessa vez, Santinha tratou de anotar o nome certo do “médico de varize”: Anjolojista.

A consulta com o Angiologista assemelhou-se às outras feitas até então, no que diz respeito à rapidez. Ele perguntou se a perna inchava, se ela trabalhava em pé, pegou, olhou, disse que não via nenhuma variz, mandou, por fim, que ela descansasse com as pernas elevadas e passou uma meia elástica para ela usar, mesmo sob os protestos de Santinha que lembrou das condições de trabalho com as pernas em imersão na água do rio.

Enquanto aguardavam os resultados dos exames que iam sendo solicitados e feitos, em progressão geométrica, Santinha sugeriu que se procurasse um médico de “pele e alergia”. Marcaram um Alergologista e Pneumologista que, ao ver as lesões, achou por bem solicitar uns testes alérgicos de contato, alimentares e de inalantes. Por insistência de Santinha, foram também solicitados exames de sangue, fezes e urina.

As dores tiveram uma melhora razoável com o uso das medicações prescritas. Não fosse a persistência daquelas perebas na pele e da queda de cabelos, Pombinha já poderia se dar  por curada. Mas faltavam os resultados dos exames e o parecer dos médicos.

De posse dos resultados da TC de crânio e do EEG, retornaram ao Neurologista. Numa rápida olhada nos laudos, o especialista falou que ela podia ficar descansada, que estava tudo normal, que ela não tinha nada na cabeça. Pombinha não se ofendeu com essa última afirmativa porque não captou a duplicidade de sentido. Também não foi intenção do médico dizer que o seu crânio continha um vácuo em lugar do cérebro. Saiu aliviada do consultório, com a certeza que os “exames de cabeça” certificaram que ela não era maluca.

Mais alguns dias de espera, chegou a vez de levar os resultados dos RX e US das articulações ao Ortopedista. Depois de colocar as chapas naquele negócio que acende uma luz fluorescente, o especialista deu uma olhadinha nos laudos que as acompanhavam e disse que não tinha nada de errado com as juntas de Pombinha. Ela própria, tomando coragem, e também porque gostara do médico, falou que as dores já tinham passado, depois do remédio. Foi realmente uma pequena inflamação que cedeu ao uso do anti-inflamatório, concluiu o médico, despedindo-se de Dona Maria das Dores.

Os testes alérgicos não gozaram muito da simpatia de Pombinha, que sentiu muito incômodo e coceira, com aquele tabuleiro de xadrez nas costas. Quando receberam o resultado, Santinha abriu ao chegar em casa e viu tanto X, que parecia jogo de loteria esportiva, com nome de comidas e outras coisas em lugar dos times. Não entendeu nada, mas achou que ali estava a razão para a doença da comadre. Os exames de sangue, fezes e urina também ficaram prontos. Levados ao Alergologista e Pneumologista, este foi olhando página por página e fazendo uma cara feia, torcendo o bico, até que pôs fim ao suspense causado. Disse que Dona Maria das Dores tinha alergia a couro, poeira, mofo, camarão, abacaxi, laranja, banana, leite e outras coisas que ela nunca tinha comido ou ouvido falar. Concluiu que essa devia ser a causa das lesões de pele apresentadas. Só que tinha mais algumas coisas: o hemograma mostrou uma anemia, o exame de urina mostrou uma leve perda de proteínas, e no exame de fezes era mais fácil dizer o que não apareceu - parecia uma sala de aula em que a professora vai fazendo a chamada e todos os alunos vão dizendo “presente”. O médico prescreveu um anti-alérgico  e disse que ela devia evitar contato com os alergenos aos quais se mostrou sensível. Passou um bocado de “remédio de verme” e um outro, “à base de ferro”, para a anemia. Recomendou que ela procurasse um Nefrologista ou Urologista para ver a causa da presença de proteína na urina. Ao chegar em casa, Pombinha comentou, satisfeita, que pelo menos ainda podia comer farofa d’água com carne de sertão.

A necessidade da ida a mais um especialista não significou nenhuma chateação adicional para Pombinha. Pelo contrário: até que estava gostando de estar em Salvador. Era como se estivesse de férias, passeando, sem ter que encarar a dura rotina de ter que ir para o rio, todos os dias, lavar a roupa suja dos outros. Santinha opinou que deviam procurar um “médico de rins”, e não um “orolojista”, que é médico que cuida só das partes do homem, segundo sua sabedoria. Infelizmente, dos três Nefrologistas que atendiam pelo convênio, um estava de férias, o outro estava num congresso, e o outro só poderia atender no mês seguinte. Tiveram que regressar a Nazaré, de tardinha, também porque não podiam abusar mais da hospitalidade da prima Laurinha, uma santa, que insistiu que elas ficassem, disse que não davam trabalho, que lhe ajudavam e faziam companhia, e coisa e tal.

Conseguiram chegar na estação do ferry a tempo de pegar a balsa que sairia às seis e vinte. Rumaram para o convés superior e tomaram assento junto a um velhinho, entretido na leitura de seu jornal. No momento em que virou a página, a face do velho mostrou-se por uma duração suficiente para que Pombinha o reconhecesse. Apesar das marcas do tempo, aquele rosto ainda guardava a expressão que conseguia ser, simultaneamente, austera e afável. Trazia de volta as lembranças do tempo em que ia até a casa dele, ainda menina, pegar a trouxa e o rol de roupas sujas que sua mãe lavava semanalmente.

- Dr. Demoste! Tá lembrado de mim não? - exclamou e perguntou Pombinha.

- Assim à primeira vista não me recordo! - respondeu Dr. Demósthenes, ajeitando os óculos.

- Sou Maria das Dô, Pombinha, filha de Quitéria, que lavava as roupa de sua casa, lá em Nazaré! - esclareceu Pombinha, com uma intimidade respeitosa.

- Sim, sim, Quitéria, lembro sim! Você era aquela menina que vivia espetando o pé no espinho de mandacaru? Que vivia tendo amigdalites?

- Sou eu sim! Ispinho e garganta. Sou eu mermo! O Sinhô lembra, né? Tá indo lá pra Nazaré?

- Não! Vou passar uns dias na minha casa da ilha. Faz um bom tempo que não volto lá. E você, como está?

- Num tenho passado muito bem não, dotô. Tive vexada por esses dias, cheia de coisa pelo corpo, dor, essas coisa!

- Mas como começou? O que foi que apareceu primeiro?

- Bom, faz uns mês que eu tive, sabe, um carocinho que virou uma firida nas parte, sabe, dotô? Apariceu até uma íngua aqui na viria, que ainda tá até um pouquinho. Passou um tempo e cumecei a me senti mal, assim, dor nas junta, nos osso, arripio, fastio, e apariceu umas mancha na pele, no corpo, assim paricendo sarampo ou catapora, e os cabelo de trás das oreia cumecou a cair os tufo, e da sombranceia também. Aí foi que minha cumade Santinha, essa aqui, lembra dela, filha de Teté, lavadeira também, aí foi que ela que sempre me dá uns remédio caseiro disse que era milhó eu ir pra Salvador, pra ver uns ispecialista. Aí eu vim, fiz um monte de izame, tá até aqui se o Sinhô quisé vê, fui no médico de cabeça, de osso, de varize, de alergia e tinha que ir também no médico de rim mas num deu. As dô já passou, sabe, só ficou as pereba na pele, aqui ó, tá vendo? E o cabelo também, ó!

- Você é casada, minha filha? Mantém relações com algum homem?

- O Sinhô sabe, né Dotô? Casada casada num sou, mas vivo com um peste, que passa mais tempo na rua que em casa, dorme fora, fica um tempo sem aparicê... Minhas amiga diz que ele vive lá no Brega, na Funtinha, com as rapariga, mas eu num ligo muntcho, porque ele num é meu marido mermo, né?

- Bem... Pombinha, não é? Pelo que você me disse, Pombinha, e pelo que eu vi, tudo o que você está apresentando é característico de sífilis. Vai ser necessário um exame de sangue para confirmar, mas é o diagnóstico mais provável!

- Shife? Num é aquela duença venera? Vixe, isso mata, num mata Dotô? Ai, meu Deus!

- Já matou muito. Mas, depois do surgimento da penicilina, o tratamento cura completamente. Eu vou lhe dar a solicitação do exame, que vai poder ser feito, lá mesmo, no laboratório do hospital. Pegue o resultado e me procure no sábado, na casa de meu irmão Diógenes, em Nazaré. Eu vou aproveitar e dar uma passadinha na terra, para matar as saudades daquela feirinha, comprar uma farinha da boa...

Durante o restante da travessia, Pombinha e o Dr. Demósthenes trocaram reminiscências, lembraram os vivos e enumeraram os mortos. Santinha permaneceu numa mudez pouco característica em seu comportamento. Ao se despedir do médico, Pombinha reclinou-se e beijou-lhe as mãos, revivendo um gesto que costumava fazer ao pedir a benção de seu pai. As lágrimas que vieram aos seus olhos falaram muito mais que o “muito obrigado” que tencionava dizer. O velho médico, mesmo acostumado a essas demonstrações de gratidão, também se emocionou e deu-lhe uns tapinhas na cabeça, paternalmente.

No sábado, conforme combinado, Pombinha levou o resultado do exame até a casa de Seu Diógenes, no Alto da Conceição. O Dr. Demósthenes estava sentado numa espreguiçadeira, na porta da rua. Olhou o laudo analítico e pelo movimento afirmativo que fez com a cabeça, e pelo hum-hum, sabia-se que tinha confirmado o diagnóstico. Prescreveu o tratamento padrão para sífilis secundária, num total de seis ampolas de penicilina benzatina de 1.200.000 unidades, duas a cada sete dias, durante três semanas. Aconselhou Pombinha a mandar o seu companheiro Filinho fazer o mesmo, e que só voltasse a ter relações com ele novamente, depois que estivesse tratado, caso contrário, tornaria a pegar a infecção. Pombinha agradeceu muito, disse que ia mandar que Filinho se tratasse, e que ia mandar também outra coisa: que ele fosse baixar noutro terreiro!

Na volta para sua casa, depois de ter tomado as duas primeiras injeções na farmácia de Seu Tércio, Pombinha passou na casa da comadre Santinha, para contar o desfecho do caso. A comadre ouviu atentamente, concordando com a decisão de Pombinha em se desvencilhar, finalmente, de Filinho. Quando foram interrompidas pela vizinha Matilde, querendo saber o que ela devia tomar para uma tosse braba que apareceu no dia anterior, Maria dos Remédios mandou que ela, antes de tudo, se consultasse com um clínico geral.

Maria das Dores riu.

                                                                    José Roberto Tolentino (2002)

Um comentário:

  1. Gostei demais desta cronica ou conto, não sei ao certo. Parece mais uma crônica e me deu uma saudadeeee daqueles bons tempos. Continue contando estes "causos" pois leitores não faltam.

    Um abraço

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